segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Entrevista concedida a Cláudio Prisco Paraíso

Com a licença do jornalista Cláudio Prisco Paraíso, reproduzo a conversa que mantive com ele na última terça-feira.

O artigo que foi publicado semana passada foi uma sinalização da despedida?

Não, se tu leres uma série de coisas que tornei públicas através do blog (biranotes.blogspot.com) vais ver que aquelas ideias estão todas no blog. Estão de uma maneira diferente. O que o artigo fez foi simplesmente sintetizar um conjunto de ideias e uma leitura da realidade brasileira que eu venho fazendo há muito tempo. Isso não é de agora, é das minhas conferências, de artigos que já publiquei, não só na imprensa norteamericana, mas no Brasil mesmo. Há muito tempo eu venho falando isso. E não há nada de novidade. Há muitas pessoas hoje no Brasil dizendo basicamente as mesmas coisas.

Ou seja, o dinheiro está muito concentrado em Brasília...

Claro, o que acontece é isso. O Brasil não nasceu como um país. Os portugueses para aqui vieram na esteira dum processo predatório. Nunca tiveram o ânimo de permanência aqui. Por circunstâncias, porque Napoleão invadiu Portugal, trouxeram a corte pra cá. Então o Brasil passou a se constituir de fato geopoliticamente como país em que a “sociedade” estava subsumida, dentro do Estado Português. Só recentemente o Brasil começou a ter ideia do que é ter uma sociedade civil, uma sociedade independente do Estado. Por quê? Porque o Estado brasileiro sempre cooptou a “sociedade”. Agora, para fazer esse processo de cooptação, isto é, dar o emprego, montar o esquema de subsídio para empresários, patrocinar sindicatos (qual dos sindicatos no Brasil não está vinculado de alguma forma ao Estado?), sustentar entidades tais com as próprias ONGs, as quais, muitas delas são apenas outra modalidade de cartório. Para ter esse Estado hipertrofiado, precisa dinheiro. Dinheiro buscado lá fora, por empréstimo, como normalmente se fazia, ou suprido por uma situação econômica extremamente favorável como a de hoje, em que recursos vultosos entraram no país através da exportação de comodities, e juros altos que atraíram o capital especulativo internacional. Esse dinheiro, contudo, é concentrado na mão do Estado que o distribui de forma a manter cativa a maior parte da sociedade.

Tem o caso de SC e ... de recursos para os Poderes, é um equívoco?

Sim, é um equivoco. Hoje 18% da receita do Estado é para os Poderes. Os Poderes não precisam de tudo isto...

Sobra quanto para investimento?

Por volta de 4%.

Quanto seria o ideal? Dois dígitos? Dez por cento?

Não... não se trata deste ou daquele percentual. Tudo depende de qual é o objetivo ou proposta de governo. Se a proposta for a de manter o status quo, a mesma lógica de cooptação da sociedade e encastelamento de diferentes grupos políticos no aparato estatal (Executivo, Legislativo e Judiciário), o investimento necessário para a prestação de serviços tais como segurança, saúde, educação, infraestrutura fica em segundo plano e, assim sendo, o volume de recursos que irá para este fim não será tão grande. Mas, se a ação de governo via Estado estiver voltada para a sociedade como um todo, voltada para melhoria dos serviços essenciais, para a atualização da infraestrutura do tipo construir uma ferrovia, ou um sistema de transporte urbano pra valer, ou penitenciárias, então, sim, é preciso muito mais do que hoje o governador dispõe. Falta no Brasil o tipo de transparência que não é resultado duma outra lei. Não se implanta transparência por lei. O governante no momento em que recebe o mandato, recebe com uma certa expectativa da população de que a vida das pessoas melhore. Para que isto aconteça, o governante tem de levar diretamente ao povo as suas bandeiras, dizer “estou com problema nessa área e não tenho recursos para fazer isso”. É necessário um contato direto com o povo. Não estou preconizando que a classe política, o Legislativo, seja marginalizado, não. O Legislativo tem o seu papel de legitimar a relação entre o povo e o mandatário do Poder Executivo. Se a sociedade deixar claro que quer isto e não aquilo, os deputados não terão outra opção a não ser atendê-la. Para ser prático: imaginem um deputado que advogue um determinado interesse, se o governador propõe algo distinto e coloca a opinião pública a seu lado, será que o deputado vai ser contra? Nunca.

No artigo também fizeste uma crítica à classe política, a questão do clientelismo, do fisiologismo.

Não só à classe política, à classe empresarial também. Já hoje no Brasil há empresas que são competitivas e não dependem do subsídio do Estado. Mas eu brinco sempre que um grande número de empresários brasileiros não deveria ser chamado de empresários, mas de comissários do Estado. Porque recebem benefícios, incentivos, são subsidiados pelo Estado no seu papel de cooptador. Minha crítica não é à classe política ou à classe empresarial. É uma crítica ao tipo de cultura que internalizamos no Brasil e que faz com que existam estes personagens privilegiados, sejam eles empresários, políticos, sindicalistas, dirigentes de movimentos como o MST, etc.

Como foi a convivência com essas figuras nesses nove meses?

Foi ótima. Eu não conhecia a maioria dos deputados de Santa Catarina e tive a melhor das impressões dum grande número deles. Percebi que é gente bem intencionada, mas que está prisioneira da lógica que referi antes. Não consegue romper essa lógica. É cultural. Não consegue romper a lógica e continua com as mesmas práticas inerentes à tal lógica. Tive uma excelente relação com a Fiesc. Tenho a melhor das impressões do ex-presidente da Fiesc que saiu recentemente. Conheço o Glauco (José Côrte) há algum tempo e tenho a melhor das impressões dele também. Veja, se pegarmos o percentual de ICMS que o Estado arrecada sobre o faturamento bruto de qualquer setor, o têxtil, por exemplo, veremos que o Estado recolhe em média algo aí um pouco acima dos 2%. Não é 7%, nem 14%, porque os benefício fiscais produzem uma enorme renúncia fiscal. Mas não há outra opção. Sem o subsídio, via política de benefícios, para as empresas de SC, corremos o risco de um desemprego em massa. As empresas ou sairiam do Estado ou fechariam. A política social do governo é feita pela política de benefícios fiscais. A renúncia fiscal esse ano é de R$ 4,2 bilhões. Nas conversas com empresários e com a classe política, nunca tentei, nem tenho essa veleidade, de mudar o vetor existencial das pessoas, a forma como elas veem o mundo e as suas circunstâncias. Sempre dou o seguinte exemplo: você pega um fumante e mostra a radiografia de pulmão, diz que se continuar fumando vai ter um câncer, assim, assim, então precisa parar de fumar. Ele pára? Não pára, porque o vetor existencial é mais forte. O fumo faz parte da sua condição existencial, faz sentido para ele. Como, pois, pretender que o mero exercício da razão seja suficiente para fazer com que as pessoas cuja existência faz sentido do jeito  que está, mudem de ponto de vista, sejam elas empresários, políticos, sindicalistas, etc. O pessoal me chama de teórico porque, por viés de formação, tento ser absolutamente racional e ver a realidade tal como ela é e não como eu gostaria que ela fosse.

O secretário da Fazenda teve a missão de fechar o cofre, de fazer economia, conter gastos...

Não, isso é um grande equívoco. Isso é desconhecimento de como funciona o Estado. Aquilo que se falou em termos de contenção de gastos não existe. Há um orçamento e este orçamento tem que ser executado. O que aconteceu? Nos primeiros quatro meses o governo suspendeu em grande parte a execução do orçamento. Porque deixou de executar? Porque o governador, com muita propriedade disse: “Eu preciso conhecer com mais profundidade o governo que herdei”. Ele herdou um orçamento. O primeiro ano do governo Raimundo Colombo foi condicionado a esta herança. Herança não só política, (e aí foi uma decisão dele aceitar a lógica do processo político tal como vinha acontecendo), mas também herança administrativa, de gestão. Não foi ele quem propôs como alocar recursos dentro do orçamento de 2011. Ele herdou o orçamento. Sobre contenção de despesas... vai conter despesas aonde? No custeio? O custeio de Santa Catarina já é o menor do Brasil. Vai reduzir o quê? Vai reduzir o número de viagens? O que isso representa dentro duns 6% de despesas de custeio? Muito pouco. Economia, na maneira como o sistema opera, e não é só em SC mas no Brasil, não é feita dessa forma. Se faz diminuindo o tamanho do Estado. Se faz criando o Estado necessário às demandas de toda a população e não só de alguns grupos.

O governador perdeu a oportunidade de extinguir as regionais e de enxugar as setoriais?

Conversei muito com ele sobre isso. Minha leitura de situação, não é a dele. Temos uma posição diferente. Eu estava lá nos Estados Unidos quando ele me ligou e convidou para participar da sua administração. Acompanhei pela internet a celeuma provocada pela indicação do meu nome para secretário da Fazenda. Ele enfrentou uma reação enorme e fechou questão. Diante disto, pensei: é o seu grito de independência, porque a Secretaria da Fazenda é emblemática, dela fluem recursos para sustentar a lógica do processo político e, por consequência, a lógica da gestão administrativa. Comecei imediatamente a fazer um diagnóstico da situação do Estado. Vim para sugerir uma certa dinâmica diferente de governo, um projeto de governo que passava pela premissa – que eu assumira como sendo aquela que prevaleceria – da independência, de romper com a atual lógica do processo político-administrativo. Aí, na primeira reunião que tivemos para discutir o assunto, ele me fez ver que não tinha condições de adotar no momento algo muito diferente da realidade que todos nós conhecemos. Ficou claro para mim que ele entendia que as condições políticas do processo exigiam outra coisa. Quando digo mudar a lógica do processo político quero dizer o seguinte: há hoje no País um processo de loteamento do Estado entre diferentes grupos políticos para que esses grupos possam ter uma alavanca institucional na defesa de seus interesses dentro do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Aliás, infelizmente esse processo de aparelhamento do Estado Brasileiro não aconteceu só no Executivo. Aconteceu no Legislativo e aconteceu no Judiciário. Percebi que o caminho não seria aquele que eu imaginara. Eu só tinha uma alternativa. Por profissão, o que eu faço é exatamente isso, em empresas, em organizações: eu mudo a lógica do sistema. A premissa é a seguinte: não está dando certo? Vamos fazer algo diferente para que possa dar certo. Esse é o meu cacoete profissional.

Esse recuo então já criou uma situação de conflito para aquilo que o amigo imaginou que estava sendo convocado.

Não criou um conflito. Criou, isto sim, um cenário diferente daquele que eu havia imaginado. Eu me perguntei: o que posso fazer? Tinha a opção de voltar para os Estados Unidos. Mas, esta era uma falsa opção. Raimundo Colombo, aos meu olhos, era antes de mais nada um amigo muito querido. E, o governador era ele. Como amigo, impunha-se ajudá-lo, embora até divergindo da lógica do processo que ele adotou, como lhe disse algumas vezes. Mas, como sempre procuro levar em conta de que não sou o dono da verdade, aceitei a possibilidade de que ele, com sua sensibilidade política, estava, quem sabe, percebendo determinadas dimensões do processo que eu, por viés profissional, estava desconsiderando. Disse-lhe, pois: já que este é o caminho que tomaste, vou procurar tirar as pedras do caminho. Foquei-me, portanto, nos problemas estruturais do Estado e comecei a buscar alternativas de solução para os mesmos.

Mas aí com resultado mais comprometido...

Com resultado comprometido se partires da premissa que era importante mudar a lógica do processo. Mas se partires da premissa que era impossível mudar a lógica, ou pelo menos, naquele momento não era possível mudar a lógica do processo, o resultado não seria comprometido. São dois cenários distintos.

É uma nova realidade...

É uma nova realidade. Já há muito tempo aprendi que, pelo fato de eu ter uma determinada visão, ainda que bem articulada e com consistência interior que me diz que aquilo ali é verdadeiro, nem por isto ela acabe prevalecendo. A vida já me derrubou tantas vezes que eu digo: olha, espera um pouquinho, acho que tem que ser por aqui, mas se for por ali... quem sabe... Neste contexto é que deve ser entendida a questão da minha brevidade... Eu tinha uma ideia de como o Estado estava. Perguntei-me: como posso dar ao governador a condição de ter mais recursos para o que ele decidir fazer? Mesmo que crescesse a receita (e a receita efetivamente cresceu), em função da forma como é repartida, no final das contas ainda estaríamos com algo em torno de 4% para novos investimentos. Quatro por cento em valores absolutos é um volume grande, mas comparado com o que se arrecadou, é pouco. Assim sendo, detive-me em tentar fazer com que a receita continuasse crescendo e que a máquina da Secretaria da Fazenda tivesse tranquilidade suficiente para poder trabalhar. Eu tinha pedido ao governador que me desse respaldo para blindar meu esforço de montar a equipe da Secretaria da Fazenda de ingerências e indicações políticas. A  Fazenda tem um bom corpo técnico. E isso foi feito. E foi importante. Contudo, não nos iludamos, na Fazenda existe o mesmo corporativismo pervasivo pelo Estado Brasileiro todo. Lá se digladiam os contadores, os fiscais, os auditores e os analistas. Em seguida, nos propusemos a não perder arrecadação. Olhei a estrutura da arrecadação e aí ficou muito claro o seguinte: o movimento econômico do setor primário de Santa Catarina não é mais de 8%. A geografia do Estado dita isso. O Planalto Serrano que poderia ser usado para a agricultura mecanizada não pode porque o teor de causticidade do solo é tão alto que exige muito calcário para correção da terra. Então ficam as pequenas propriedades. Quem soube utilizar essa configuração geosocioeconômica do Estado foram as grandes integradoras: a Perdigão que conheci bem, e a Sadia, as duas agora BRF. Elas pegaram os 30 e poucos mil pequenos proprietários e  integraram o processo produtivo destas propriedades. Mas é isso, não é muito mais do que isso. O resto é agricultura de subsistência, um pouco de fumo, cebola. O setor secundário, aquele que tradicionalmente é o orgulho de Santa Catarina, têxtil, moveleiro, cerâmico, metal-mecânico, é composto de setores que vem perdendo competitividade em função do protagonismo da Ásia. E agora? Esses setores representam 20 e poucos por cento do movimento econômico do Estado. Então onde há espaço para crescer? No setor de serviços, no setor terciário. No crescimento desses setores muitas coisas contribuíram: a conta turismo realmente cresceu, porque SC passou ser um destino importante. Com o turismo, vem o comércio. O comércio cresceu, tanto o de atacado quanto o de varejo. O setor terciário responde por cerca de 68% do movimento econômico do Estado. Mas ocorreram outras coisas: um movimento de importação brutal, incentivado pela política de benefícios do governo, (que é objeto da denúncia de guerra fiscal que se faz contra SC), fez com que importadoras passassem a utilizar intensamente os portos de SC. Essa forte movimentação portuária gera mais uso do combustível, energia, comunicação, etc. E, tudo isto permite aumento de arrecadação do ICMS. Convém lembrar que entre as principais contas do ICMS estão combustível, eletricidade, telecomunicações. Havia uma reação forte da Fiesc e de vários setores da opinião pública, no Brasil inteiro, com relação à política de benefícios na área de importação. Perguntei: quanto é que esse movimento de importação gerará em ICMS neste ano? Cerca de R$ 760 milhões. Ora, não posso abrir mão disso. Se eu apertar o torniquete, via alíquotas mais altas, corro o risco de perder arrecadação. As importadoras podem perfeitamente buscar outras plagas, com enorme facilidade. Tentei, pois, construir nos últimos 10 meses, negociando, um aumento de alíquotas realista tanto para as importações como para o Estado.

Foi feito um pacote... foi entregue ao governador?

Claro. Não foi um pacote. Foi um processo de repactuação de compromissos. Os novos protocolos foram assinados. Esse é um trabalho que eu considero extraordinário. Por que eu me preocupei com isso? Pelo que eu disse antes, porque precisava oferecer ao governador mais recursos. Não posso fazer com que a arrecadação caia, tenho que fazer com que a arrecadação aumente. Para fazer com que aumente não posso deixar de lado o fato de que um volume significativo de recursos vem de importação.Tratemos, então, de dar mais segurança jurídica às empresas que aqui se deslocarem. Por exemplo: não daremos nenhum benefício fiscal que não esteja sendo praticado por pelo menos um outro Estado. A denúncia da guerra fiscal provocada por SC é improcedente. Aqui entre nós, São Paulo, Espírito Santos, Goiás, e outros, fazem a mesma coisa que nós. Acho que conseguimos equacionar esse problema: temos uma boa perspectiva de arrecadação para o ano que vem no setor de importações, no setor terciário, que é o setor de serviços. Os outros estados não entendem a nossa ênfase no setor de serviços. Mas, não é difícil de entender. O Rio Grande do Sul e Paraná, por exemplo, podem ter uma queda no setor de manufatura, mas as commodities, tais como o trigo, a soja, a pecuária e conseguem compensar perdas no setor secundário da economia. Santa Catarina não tem este luxo. O que fizemos foi algo muito simples: tentamos responder às circunstâncias que definem a vocação socioeconômica original do Estado.

Aquela questão da Lei Kandir, não tinha expectativa de entrar recursos, ou isso nunca vai se materializar?

Não, isso nunca vai se materializar. É o governo federal que determina as remessas que são feitas para os estados. Para SC elas estão muito abaixo daquilo que nós, em tese, deveríamos estar recebendo. A política de importação e de exportação no Brasil é ditada antes de mais nada pelo governo federal. Os estados podem traçar políticas de benefícios, como o fizeram, (acho que temos hoje mais mil políticas diferentes de benefícios fiscais no Brasil). Mas, isto gera uma insegurança jurídica que dificulta a vinda de investimentos produtivos (não especulativos) para o País. Como você explica, por exemplo, aos alemães da BMW que paira sobre a política de benefícios de todos os estados dúvidas sobre sua constitucionalidade, como fez um dos nossos especialistas?

O cidadão falou?

Mas é verdade, ele não disse nada de novo. Se quiséssemos questionar juridicamente tais políticas, poderíamos levantar a tese de que tudo é inconstitucional. Estamos dizendo para o estrangeiro: eu te garanto um benefício que é inconstitucional, mas que todo mundo pratica. Esses são os paradoxos do País e Santa Catarina não é exceção. A outra questão que para mim era importante para fins de ingresso de um recurso extra, era a questão da federalização das Letras. Não entro no aspecto político disso aí, nem quero saber, quero só saber de uma coisa: o que significaria na prática em termos de receita adicional. Teríamos uns R$ 500 milhões a mais de receita.

Esse valor não entraria no compartilhamento dos Poderes?

Entra, no meu entender. Mas, há opiniões divergentes.

E na questão da Invesc?

As debêntures da Invesc é coisa completamente distinta. Não entra dinheiro no Estado. O importante é o seguinte: o valor de face das debêntures hoje é mais de R$ 3 bilhões. Quando foi feita a emissão das debêntures elas tinham o valor de US$ 100 milhões, lastreadas por 29% das ações da Celesc. Esses 29% das ações também valiam cerca de US$ 100 milhões. Cem para cem. Só que os termos dos contratos com os debenturistas (juros, correção, etc.) fizeram com que essas debêntures hoje valessem R$ 3 bilhões enquanto os 29% das ações da Celesc valem algo aí pelos R$ 400 milhões. Claro que o Estado não vai pagar, não tem condições de pagar. Mas o problema que me preocupava era o seguinte: se de fato houver uma decisão da Justiça reconhecendo no mérito o direito dos debenturistas, o Estado tem seu passivo aumentado em R$ 3 bilhões e sua capacidade de endividamento cairá. Por isso a minha pressa em resolver a questão das debêntures. O principal debenturista é a Previ. Apresentamos a Previ uma proposta transparente, de mercado. Não divulgarei a proposta por ainda não termos ouvido uma reação formal das partes interessadas. Ela foi apresentada...

A quem? Ao governador?

Não, à Previ. Claro, o governador sabia, primeiro eu conversei com ele.

E o que falta pra...

O principal debenturista é a Previ. Na minha opinião nossa proposta não prosperará, embora ela seja absolutamente cristalina, uma operação simples de mercado.

Não tem o que hoje se convenciona chamar em Brasília de pedágio?

A nossa proposta não abre espaço para tal prática. A operação é limpa, transparente. Em São Paulo, testei primeiro com os interlocutores afeitos a este tipo de operação e eles me garantiram uma boa perspectiva de sucesso. Tínhamos até alguns interessados em fazer a operação. Mas, de repente, essa operação travou. Pode ter travado por várias razões... Não sei se entre tais razões está a que mencionaste... Contudo, há duas semanas houve uma decisão da Vara Cível reconhecendo um argumento do Estado de que o fórum competente para julgar o pleito dos debenturistas não era a Vara Cível, mas a Vara da Fazenda Pública. No momento que isso aconteceu, o Estado ganhou mais alguns anos para enfrentar o assunto. Agora quem não está interessado em fazer a operação é o Estado. Fui contatado por alguns interessados na semana passada e minha resposta foi: bom, agora quem tem uma boa “mão” é o Estado. Portanto...

O que gostaria de ter feito que não foi feito?

Nada, Cláudio. Nada, nada. Olha, foram 10 meses brutais. Nunca tive um trabalho que demandasse tanta intensidade como este. Por duas razões. Primeiro porque eu estava tentando tirar as pedras do caminho escolhido pelo governador. Isto é, estava tentando ajudar o Raimundo, como amigo que sou. Mas, ao mesmo tempo, estava dividido internamente, porque achava que não era o melhor caminho. Embora respeitasse a decisão dele. Tanto assim que o estava ajudando. Porém, isso provoca uma tensão adicional, porque se está dizendo por um lado: vamos por aqui, vamos lá. Por outro lado, não pude evitar de continuar pensando: puxa vida, continuo achando que o melhor seria seguir outra trilha... Esta divisão interna é desgastante.

Gera frustração?

Não.  Frustração ocorre quando a gente acha que é capaz de controlar as circunstâncias em que se vive no momento. Nunca conseguiremos isto. Vamos nos frustrar sempre, se assim pensarmos e agirmos. A vida não se controla. Se vive em resposta ao nosso aqui e agora. Foi o que tentei fazer. O valor amizade pra mim pesa mais do que qualquer outra coisa. Exercícios intelectuais e dúvidas não contavam. Não era um exercício... Era, pô, o Raimundo precisa da minha ajuda e eu vou ajudar.

Houve desapontamento em relação a alguém? Ou a alguma circunstância?

Sim. Alguns... Se me permites, vou olhar primeiro a face positiva da moeda. Encontrei pessoas de primeiríssimo nível aqui em Santa Catarina. Independentemente do juízo que eventualmente o público faça sobre elas, eu com elas convivi e delas tive a melhor das impressões. E gente jovem. Vou dar exemplos, o presidente da Assembleia, Gelson Merísio. Eu já o conhecia, mas fiquei muito bem impressionado com sua incisiva coragem. Pelo que dele conheço, Gelson tem uma idéia clara do que é o interesse público. Isso é uma boa. O sujeito é um político, é o presidente da Assembleia e, de repente, se atreve a tomar determinadas decisões que contrariam a lógica do processo político. Decisões contraculturais. Outro elemento jovem que me impressionou pela capacidade de gestão, talvez até um pouco jovem demais para as atribuições e responsabilidades que recebeu, é o Gavazzoni. Outra pessoa que foi um auxiliar inestimável a quem passei a querer bem, é o Alexandre Fernandes. Sobre o Alexandre se dizem muitas coisas. Eu que trabalhei com ele, jamais encontrei nele uma postura que não fosse a de perseguir o melhor interesse de Santa Catarina. Ele foi instrumental em várias dimensões do processo de gestão que conduzi na Secretaria da Fazenda, embora estivesse na Secretaria de Assuntos Internacionais. Contei sempre com sua enorme generosidade e boa vontade... Há certamente outras pessoas de quem não lembro no momento e que me impressionaram muito. Mas, voltando a tua pergunta, embora não devesse ter nenhuma expectativa quanto à condição humana, que é o que é, há pessoas dentro do próprio secretariado que me mostraram estarem mais comprometidas com suas agendas do que com a agenda do governo.

Deseja nominá-los?

Não. Há pessoas que são assim. Tu mesmo presenciaste um evento... esse tipo de pessoa. Agora, em compensação, dentro do colegiado tem pessoas como o próprio Serpa...

Eu ia lhe perguntar sobre a escolha...

Eu fiquei encantado com a escolha. Nelson é um homem íntegro, de hábitos espartanos. Seu sucessor na Procuradoria, o doutor João Martins, é outra pessoa extraordinária. O Raimundo vai estar muito bem servido, não tenhas dúvidas. Quem eu conheço há muito tempo e que demonstrou nesses 10 meses um amadurecimento, uma consistência que antes eu não tinha percebido, é o Paulo Roberto Bornhausen. Ele está fazendo uma gestão primorosa. E o Paulo carrega um fardo: o nome Bornhausen não é um ativo, é um passivo. Justa ou injustamente, é um passivo, não é verdade? Ganhei um amigo precioso na pessoa do Derly (Massaud da Anunciação). Sua praticidade e perspicácia me ajudaram muito. Então, puxa vida, tem gente de primeiríssimo nível ao lado do Raimundo. Agora tem outros que chegam pra você e dizem: é, pois é, o orçamento do ano que vem foi cortado, eu preciso três vezes o valor que me foi alocado. (Risos) Aí o que tu podes responder, né?

Qual a opinião de Ubiratan Rezende sobre Raimundo Colombo? Mudou? Piorou ou melhorou?

Permanece a mesma. O Raimundo é uma pessoa boa, uma pessoa íntegra, que busca sempre pacificar e acomodar os interesses. Isso são virtudes extraordinárias. As pessoas acham que eu tenho relacionamento com ele de muitos anos, não tenho, não. É de pouco tempo. E, nesses poucos anos, eu jamais recebi do Raimundo nada além da maior consideração e demonstrações do maior apreço. Sou grato a Deus por ter me dado um amigo. Porque a amizade é coisa que se recebe, não se conquista, nem se constrói. Então receber uma amizade tão especial e tão particular como essa que o Raimundo teve a generosidade de me oferecer é um presente extraordinário. Espero ter reciprocado. Então, não mudou absolutamente nada, nenhuma vírgula, ele é quem ele é.

E qual a grande contribuição desse período de 10 meses?

Tu dizes do governo em geral?

Do seu papel no governo, qual foi a grande contribuição?

Olha, Cláudio, tem essas coisas que falei, acho que a política de benefícios foi uma coisa muito importante, ter oferecido ao governador o argumento necessário para que, se quiser politicamente, encaminhe a questão das Letras também foi um trabalho importante. Eu acho que o fato do Estado ter sinalizado e ter conseguido em nível de opinião pública no Brasil sair daquela situação de ser um alvo obsessivo das críticas quanto à guerra fiscal foi também muito bom. Termos oferecido aos debenturistas da Invesc uma proposta limpa, onde todos sairão ganhando, inclusive o Estado, é algo que me deu satisfação, mesmo que ela venha a não se concretizar. Afinal, nós fizemos o trabalho, demonstramos o que queríamos fazer. Agora, tem uma coisa que é um pouco técnica e eu não vou entrar em detalhe, mas o grande público vai ter uma ideia mais tarde de quão importante foi essa conquista de obter do Confaz uma autorização, quer dizer, um convênio que permitisse ao Estado usar até 5% da sua receita como crédito outorgado ou crédito presumido, para fins de investimento em infraestrutura. Isso é muito importante e será provavelmente um marco do atual governo. Não quero com isto criar muita expectativa porque tudo vai depender da operacionalização. Não gostaria de criar uma expectativa indevida. As pré-condições para que o governo tenha um instrumento diferenciado para tornar a gestão do Raimundo emblemática, isso está no lugar. Considero a maior conquista da minha gestão. Tanto é que ao meio dia e 45 de sexta-feira, quando concluímos, quando conseguimos a aprovação, eu imediatamente pedi ao Raimundo que nos encontrássemos. Ele foi a minha casa às três horas da tarde quando, então, eu pude lhe dizer: amigo, meu dever está cumprido. O Raimundo foi extraordinário neste processo de aprovação do Confaz. A alavancagem política que o governador pode exercer em processos desse tipo é fundamental. E ele liderou as negociações com o governador de São Paulo e os demais.

Pra fechar, o que o governador Raimundo Colombo vai ter que fazer daqui pra frente pra se viabilizar, para que possa pavimentar o caminho para o projeto dele...

Deixa eu dizer uma coisa que as pessoas poderiam não acreditar, mas talvez elas acreditem já que não sou partis pris nessa história: o Raimundo não pensa em termos de reeleição. Ele não está pensando em “como é que eu governo para me reeleger”. Ele é uma pessoa tão íntegra e a vontade de acertar dele é tão grande que a questão que ele se propõe é simplesmente esta: “O que eu posso fazer para acertar agora?” O que vai acontecer em termos de seu futuro político não é uma questão para ele, assim creio eu. Ele precisa que os teus leitores e o público em geral tenham um pouco mais de paciência. O estilo do governador é este: é o estilo de tentar trazer para suas decisões o maior número possível de atores, de fazer os compromissos e acertos. Isso faz com que o governo talvez ande num ritmo mais lento do que a sociedade espera.

Dá para qualificar esse ritmo de cadenciado?
Dá. O ritmo é pessedismo (risos)... É pessedismo histórico, não é verdade? E aqui entre nós, foi bem sucedido em muitas ocasiões, vide-se Juscelino Kubitschek, por exemplo.

Retorna aos Estados Unidos?

Retorno, segunda-feira, se Deus quiser.

Em definitivo?

Ah, em definitivo, sim. Raimundo pediu ainda que eu viesse ajudá-lo... Readquiro agora o papel em que me sinto mais confortável e que, acredito eu, ele também se sente muito confortável em relação a mim, que é o papel de alguém que o aconselha, como sempre exerci. Então aí, as questões do dia-a-dia que atrapalham o diálogo mais profundo, podem ficar entre parênteses e a gente pode conversar com mais liberdade.

E mesmo distante, hoje com o mundo globalizado...

Ih, ele esteve várias vezes lá em casa. Hoje mesmo ele me disse: “Vou lá te visitar de novo”. Eu disse, claro, vai lá quando quiseres. E pediu que eu voltasse em janeiro para ficar um par de dias aqui para conversar com ele.

Essa relação então não vai sofrer solução de continuidade...

De jeito nenhum, ao contrário, Cláudio, ela foi, se é que se pode dizer assim, foi consolidada. Poxa, o que passamos juntos nesses 10 meses, foram meses difíceis e muito mais difíceis pra ele do que pra mim.

Reassume as atividades acadêmicas...

Não, eu vou ter que esperar, a Universidade me perguntou se eu me disporia a dar aulas em janeiro. Mas, nos Estados Unidos (por isso, o pessoal acha estranha essa questão da brevidade nas minhas missões) tu tens um conjunto de tarefas a cumprir e serás avaliado pela tua competência em cumpri-las. Parte desta competência é a rapidez e segurança em completar as tarefas que compõem tua missão. Quando vim pra cá, pedi demissão da Universidade. A Universidade tem um orçamento e lá o orçamento não é uma peça de ficção. Não havia recursos para me recontratar este ano. Negociei com eles que a partir de janeiro volto a dar as aulas normalmente por um salário só simbólico, mas que permita à Universidade, do ponto de vista legal, me incluir no seu plano de saúde. O que é para mim e para a Niki, minha mulher, fundamental. Darei aulas até agosto do ano que vem, porque o ano fiscal lá termina nessa época. Então o orçamento estará refeito e se eles decidirem me reconduzir a condição de professor titular de Gestão e Política Comparada, eu volto às minhas aulas normais.

Mais alguma coisa que o amigo gostaria de comentar?

Não, só fico satisfeito de poder ter, de alguma maneira, reparado a surpresa que eu te fiz na época do Esperidião.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Sem reforma, eterniza-se a desordem

O governo brasileiro confisca em torno de 40% do PIB e devolve para a sociedade menos de 2%. Nos estados, a situação não é diferente. Em Santa Catarina, por exemplo, de tudo que é arrecadado, 25% são repassados aos municípios, 18% aos Poderes, 13% pagam a dívida com a União. Sobram 44%, menos da metade. Desses, 34% são absorvidos pela folha de pagamento e 6% no custeio de modo que sobram 4% para investimento.
Essa disparidade entre o que o Estado toma e o que devolve, na forma de serviços públicos de baixa qualidade em saúde, educação e segurança, não é lá muita novidade. O Brasil, como os demais da América Latina, foi criado, organizado e dirigido, durante séculos, de fora para dentro e de cima para baixo. A cultura política do País sempre foi marcada pelo elitismo, clientelismo, fisiologismo e patrimonialismo.
O Estado, desde os tempos da corte portuguesa, é instrumento de domínio da sociedade pelas oligarquias. O processo político no Brasil é o processo de conquista do Estado. Diferentes grupos oligárquicos se revezam à testa do Estado e o usam para amordaçar e espoliar a sociedade. Ser cidadão brasileiro significa ser membro duma sociedade a serviço e prisioneira de grupelhos.
O critério que prevalece na administração da coisa pública é o do privilégio.
 Molha-se a mão do setor político que precisa da legitimidade eleitoral e jurídica.
Controla-se os principais postos da burocracia estatal. Aqui não se trata apenas dos nomeados para cargos de confiança. Além dos comissionados, que são os prepostos do sistema político que por sua vez é preposto do setor privado, os diversos segmentos da tecnoburocracia criam um sistema corporativista na defesa de seus interesses particulares, sempre sobrepostos aos interesses públicos.
Oligopoliza-se o mercado. No Brasil não existe verdadeira competição, há oligopólios, grupos que controlam determinadas fatias do mercado. O sistema elimina a possibilidade de uma verdadeira economia de mercado, em que os agentes são desonerados para competir com preços e serviços.
Abusa-se da terceirização, que cai como uma luva para o clientelismo. Esse mecanismo protege as administrações dos potenciais rigores da lei que limita em 60% os gastos com pessoal, mas deixa a descoberto a ilimitada criatividade dos administradores públicos para contratar serviços de forma terceirizada.
A mudança da relação entre o Estado e a sociedade acabará acontecendo: ou de forma ordenada ou como resultado trágico duma situação de anomia que provocará radical insegurança às pessoas. 
Só com a mudança da atual lógica de fazer política haverá mudança na lógica da gestão pública. Isto exige _ como já aconselhava Turgot, o ministro de Finanças do Rei Luís XVI, há três séculos _ combater os preconceitos que se opõem a qualquer reforma, porque são um meio poderoso daqueles interessados em “eternizar a desordem”.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Sobre pensamento utópico e mercado

De Roger Scruton na Veja desta semana

"O pensamento utópico... serve de alívio para a difícil tarefa de ver as coisas como elas realmente são."

"O pensamento utópico... é uma forma de vício, um curto-circuito que afasta os indivíduos da razão e do questionamento racional e efetivo."

"O pensamento utópico nos remete diretamente para um objetivo, passando por cima da viabilidade do projeto."

"É fácil digerir (o pensamento utópico) e se embeber do seu otimismo mal-intencionado e sem fundamento. O problema vem depois, quando a utopia termina em fiasco."

De Maílson da Nóbrega, também na Veja desta semana

"Mercado interno e mercado externo são meras expressões geográficas do destino da produção nacional. Uma parte é vendida aqui, outra lá fora. O que vale para o produtor é a demanda, venha ela de um brasileiro ou  de quem reside no exterior. O que conta é sua capacidade de competir com produtos estrangeiros, aqui ou em outros países..."

"O mercado interno, cabe lembrar, é também o território dos consumidores brasileiros, e não apenas o dos produtores nacionais... Para certas correntes, defender o mercado interno significa proteger os produtores, blindando-o da concorrência externa via barreiras tarifárias e não tarifárias às importações. Preservam-se o lucro e o emprego de uma minoria, em prejuízo da maioria, os consumidores."

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O Estado e a crise de governabilidade

             
O que segue é resultado de longas conversas com uma das pessoas a quem tenho a honra de chamar de amigo, o Dr. João Batista de Oliveira. João articulou de forma sistemática, com sua proverbial competência, o que ambos entendemos como a exaustão dum período histórico do Brasil.
Que crise?

O Estado se encontra sob suspeita. Os governos têm contribuído para aumentar a suspeição.  Iniciativas de mudança que se intitulam “reforma de Estado” exacerbam as suspeitas que pairam sob ele.  A globalização e seus efeitos imprevisíveis e incontroláveis levam todas essas suspeições ao paroxismo.

No III Milênio, assistimos em todo o mundo o esgotamento do modelo de estado-nacional consolidado no Século XIX.   O fim da guerra fria e a busca de identidade nacional baseada nas etnias e no fundamentalismo religioso redesenham o mapa geográfico de alguns países da Europa e do Oriente Médio. Ao mesmo tempo, clássicas noções sobre o papel do Estado - defender fronteiras, preservar a soberania nacional ou proteger a moeda - vão perdendo sentido na medida em que avança a globalização dos mercados financeiros. 

Em países como o Brasil, assiste-se a exaustão do modelo do estado-gerente e promotor do desenvolvimento: o estado dirigista. O Estado perdeu o controle sobre o seu próprio crescimento e se tornou incapaz de se autolimitar, aumentando exponencialmente sua interferência sobre o cotidiano dos cidadãos, empresas e sobre a vida dos governos subnacionais.  O Pacto Federativo torna-se cada vez mais obscuro, frágil e vulnerável a mudanças nas regras do jogo tributário.

Às críticas ao desempenho do Estado, particularmente advindas dos organismos internacionais e dos defensores do chamado “estado mínimo” - e que frequentemente são subsumidas sob o rótulo de neoliberalismo - se somam essas “suspeitas” que pairam sobre o Estado.  Os governos são criticados por sua ineficiência e corrupção.   São instados a privatizar seja por razões de incompetência gerencial, seja pela incapacidade de investir em setores críticos ou seja por convicções ideológicas sobre os papéis do Estado. A privatização não se limita a atividades produtivas. Já é comum estender-se à provisão de serviços sociais e outros serviços de natureza pública.

Alguns grupos da sociedade civil aplaudem a redução e reconversão do Estado. Certas corporações parasitárias do Estado, as classes políticas e tecnoburocráticas, sindicatos e movimentos como o MST lutam com unhas e dentes pela preservação do “patrimônio público” que lhes garante o sustento e o poder.

O Estado já não cria mais empregos em número significativo, nem na economia real, nem nas empresas estatais, nem dentro da máquina pública. Até mesmo as moedas de troca usadas para clientelismo vão se tornando mais escassas.  A maioria da população empregada que, depois do controle da inflação, começou a ter acesso a comida e a algumas comodidades triviais, mas que ainda não teve acesso a serviços adequados de educação, saúde e segurança, também se preocupa com a reestruturação da máquina pública.

            O País está no meio duma crise de governabilidade. O Estado Brasileiro assumiu, sobretudo a partir da Constituição de 1988, uma vasta gama de “deveres” correspondentes aos novos “direitos constitucionais” dos diversos grupos da sociedade. Essas obrigações são, não apenas maiores, mas mais complexas e caras. A distribuição de competências entre as instâncias da Federação tornou-se mais obscura, dentro do regime de competências concorrentes.  Os recursos, no entanto, não aumentaram na proporção dos encargos. Ao contrário, aumentaram-se os gastos com o custeio da máquina pública, reduziram-se os gastos com investimentos e elevaram-se significativamente os impostos. 

A crise do Estado contemporâneo assume contornos mais dramáticos e peculiares no Brasil, e tem como pano de fundo a origem ibérica do País que expõe a fragilidade das relações entre Estado e Sociedade, bem como a fragilidade do Pacto Federativo.   A crise do Estado também é uma crise dos estados.
 
Que Estado? 

A idéia de mudança na relação Estado-Sociedade se baseia na presunção de que a tensão constitutiva entre Estado e Sociedade esteja em desequilíbrio.  Quando estável, esta tensão pressupõe uma Sociedade em que diferentes atores pressionam um Estado equidistante de interesses localizados e comprometido, antes de tudo, com a consecução dos fins para o qual a Sociedade o instituiu.

Um dos desafios de mudar o papel do Estado no Brasil - e uma das explicações pelo fracasso de "reformas do Estado" - é que, no Brasil, a Sociedade é cativa do Estado. Trata-se duma tessitura única. À falta de uma real pressão externa da Sociedade, o Estado se modifica sempre o mínimo possível e, tão só, para acomodar dentro do seu tecido interesses dos setores mais organizados da Sociedade que dele dependem. Esse Estado, no Brasil, inclui não só o aparato administrativo e os políticos, mas, pela sua formação patrimonialista e corporativa, subsume outras parcelas ativas da Sociedade.

A experiência de formação dos modernos estados europeus difere da brasileira. A Europa em geral viveu a experiência da família, da comunidade, do povo e da nação como formas naturais de vida humana associada. Lá, por razões estritamente pragmáticas, povos e nações decidiram conscientemente se organizar em sociedades.

Foi a necessidade pragmática de unir diferentes povos e nações que levou à criação simultânea de duas formas artificiais de vida humana associada: o Estado e a Sociedade. A Sociedade nasce - através do que Rousseau denominou de "contrato social"  -  com o objetivo puramente utilitário de preservar os interesses econômicos desses povos.

O Estado moderno surge concomitantemente com a Sociedade. O Estado é requisito funcional para a preservação do contrato social. Como tal, ele se consubstancia em instrumento político de manutenção da coesão interna e de luta contra o banditismo, assegurando, assim, as condições mínimas para o desenvolvimento do capitalismo moderno.

A experiência norteamericana, por sua vez, evolui a partir de origens bastante diferentes. O binômio Estado-Sociedade na Inglaterra criou condições intoleráveis para determinados enclaves sociais. A emigração foi a maneira que tais grupos encontraram para fugir dum Estado opressor: o Leviatã Hobbesiano.

Ao chegarem no Novo Mundo esses mesmos grupos preocuparam-se em constituir “estados" livres e independentes, abertos a diferentes formas de governo. Tal determinação se refletiu nas formas diferenciadas de tratar questões econômicas, comerciais, jurídicas e político-institucionais: da permissão ou proibição do tráfico de escravos e da escravatura e até mesmo de distintos regimes jurídicos como por exemplo a Lusiânia com seu Código Napoleônico e outros estados com a common law ou direito consuetudinário. O Federalismo dos Federalist Papers reflete o anseio de preservar a independência das diferentes unidades federativas na constituição de suas próprias regras de governo e de convivialidade.

A Guerra Civil, e a vitória dos aliados de Lincoln, marca o fim do ideal federalista e o início de um movimento da nação norteamericana rumo à consolidação de uma união semifederativa via Estado Moderno. Ainda assim, a Constituição Norteamericana mantém um grau de federalismo e descentralização incomparavelmente superior ao que jamais existiu no Brasil.

A experiência brasileira difere radicalmente dessas duas situações. Estado e Sociedade vieram prontos de Portugal. A carta outorgada por Dom João III a Tomé de Souza, conhecida como o Regimento de Tomé de Souza é uma autêntica constituição. Com ela, o País recebeu governo, instituições, e até mesmo municípios, antes de haver um povo e uma nação capazes de decidir pela constituição do binômio Estado-Sociedade.

A análise das constituições brasileiras, a partir da Constituição do Império de 1824, passando pelas Constituições da República de 1891 e de 1934, pela Constituição do Estado Novo de 1937, pela Constituição da redemocratização de 1946, do Regime Militar de 1967 e da redemocratização de 1988 refletem a vocação centralista do Estado Brasileiro, apesar de surtos federalistas esporádicos. Esses surtos, na verdade, têm menos a ver com uma vocação federalista do que com as necessidades de poder dos grupos que ora se viam ameaçados pelo excessivo poder central, ora pelo excessivo poder dos estados. Um exame da trajetória constitucional das competências da União e dos estados, bem como da base fiscal sobre a qual deveria se assentar uma eventual autonomia dos estados, demonstra a mencionada vocação centralista do Estado Brasileiro.

Na Constituição do Império o poder central do Estado se concentra nas funções clássicas de manutenção da lei e da ordem. O aparato administrativo do Estado, isto é, a administração pública tem como objetivo precípuo cumprir com essas funções "clássicas" do Estado. Mas, embora o poder central nem se comprometa nem se obrigue a outras tarefas e missões que não a manutenção da lei e da ordem, os tributos são todos coletados pelo e para o Império.

A Constituição da República, da lavra de Rui Barbosa, inspira-se nos ideais libertários da Inconfidência Mineira -  frustrados pela Independência -  e na cartilha federalista da Constituição Norteamericana. Com efeito, a Inconfidência Mineira _ e os movimentos que se lhe seguiram _ ensaiava não só a independência em relação a Portugal mas também a separação entre Estado e Sociedade.

A Independência de Portugal e a Constituição do Império não permitiram avançar nessa direção. Nelas cristalizava-se apenas uma mudança do endereço da residência do dono do País. Mas alguns ideais da Inconfidência sobreviveram e encontraram no federalismo norteamericano uma forma aceitável de articulação, ainda que a experiência brasileira não fosse nem sequer semelhante a que deu origem aquele federalismo.

Nessa Constituição Republicana, uma "União", isto é, um "poder central", cuida essencialmente da lei e da ordem e de apresentar anualmente ao Congresso Nacional uma prestação de contas sobre o "estado da nação". Sua única interferência nos negócios dos estados visa assegurar-lhes ajuda em caso de calamidades. Cabe aos estados (artigo 5) prover, a expensas próprias, suas necessidades de governo e administração. Tudo lhes é permitido, menos o que é expressamente vedado pela Constituição e o que fere a autonomia municipal.

Tal restrição, a partir daí, reaparece em todas as Constituições subsequentes. Os impostos federais e estaduais são nitidamente separados, cabendo aos estados o direito de criar outros impostos. A Constituição da República apresenta um forte vezo descentralizador. Esse vezo reflete a força política das antigas províncias que apoiaram os militares na derrubada do Império. Nelas se aglutinavam as convicções libertárias da Inconfidência Mineira não respondidas pela Independência, bem como convicções republicanas e federalistas. Os interesses das ex-províncias mais fortes, agora nominados de "estados", encontraram finalmente seus espaços no procênio da Primeira República.

O ideário das revoluções de 30 e 32  _  que se contrapunham à República do "café com leite", isto é, à prevalência de estados fortes como Minas Gerais e São Paulo e ao predomínio de certos governadores _  e o impacto da queda das bolsas de valores em todo o mundo ressoam na Constituição de 1934. Legitimado por Lord Keynes e pelo New Deal, o centralismo volta com força e, com ele, ampliam-se os poderes de intervenção do Estado, via governo central, nos estados e na economia.

O artigo 5º, por exemplo, prevê a exploração de serviços pela "União" e atribui a esta última a prerrogativa de estabelecer um plano viário e uma lei de diretrizes e bases da educação nacional.  Introduz, também, o conceito de "competências concorrentes" entre União e estados, nelas incluídas a saúde, cultura, colonização e instrução pública. Embora os estados mantenham seu poder de tributação, aquelas competências conjuntas passam a justificar uma contribuição de 30% dos impostos por eles arrecadados para a União, e outros 20% para os municípios. Essa mesma Constituição abre espaço para o corporativismo incentivado pelo Estado ao reservar um quinto das vagas da Câmara Federal para deputados eleitos pelas associações profissionais, como contrapeso adicional à eventual pressão dos governadores.

A Constituição de 1934, ao tentar uniformizar o poder dos estados eliminando o predomínio de uns sobre outros, acabou por reforçar o poder central. Subjacente a ela, está a idéia de que só um governo central forte pode arbitrar as demandas dos estados e coibir a truculência político-econômica dos governos estaduais mais fortes. O golpe de Getúlio veio enrolado nesta bandeira que acabou por se desfraldar totalmente na ditadura do Estado Novo.

A Constituição de 1937 concentra o poder num governo central. Ela não só elimina o conceito de competências concorrentes, mas também deixa de explicitar as competências do governo central _ exceto a de formular diretrizes para a educação e cultura. As atribuições aos estados se dão de forma implícita. Não há preocupação de estabelecer limites de competência entre os estados já que o governo central tem controle total sobre eles. Por exemplo, a identidade política dos estados fica subordinada à capacidade fiscal: aqueles incapazes de se autocustear são transformados em território.

Por outro lado, parte dos senadores é nomeada pelos governadores interventores, os quais também possuem poder de veto nas eleições. As contas sobre os recursos arrecadados são prestadas não aos representantes eleitos dos contribuintes mas a um outro aparato administrativo: o artigo 114 cria o Tribunal de Contas, recuperando uma velha instituição criada na Carta de Tomé de Souza "para promover à devassa anual dos feitos da administração pública, inclusive do Governador Geral". Por fim, a interferência do Estado se estende formalmente à ordem econômica em geral através de capítulo específico.

A Constituição do pós-guerra é nitidamente descentralizadora. Sua preocupação maior é a de expurgar o vezo autoritário e centralista da Constituição do Estado Novo. O capítulo sobre as competências da União e dos estados mantém-se relativamente vago, como na Constituição de 37, e se preserva o capítulo sobre a ordem econômica.

Pela primeira vez vinculam-se recursos federais ao desenvolvimento da Amazônia e do Nordeste, bem como se prevê a vinculação de recursos federais e estaduais à educação. Os estados continuam a contribuir para a União e seus municípios, mas alteram-se as alíquotas.  Embora o tom geral da Constituição seja o do fortalecimento do poder estadual e dos municípios, ela não oferece mecanismos capazes de impedir o ativismo e a omnipresença política, social, econômica e cultural do sistema de governo centralizado do Estado Brasileiro que responde pelo apelido de União.

Em 1967, a reforma constitucional e suas emendas durante o período militar concentram ainda mais o poder no aparato central de governo, isto é, na União. A ela se agrega como uma de suas competências, por exemplo, "estabelecer e executar planos regionais de desenvolvimento". Menciona-se pela primeira vez a criação de um sistema federal de ensino, ainda que de caráter supletivo, nos estritos limites das deficiências locais. Os fundos de participação dos estados e municípios são criados, bem como se ampliam de 10% para 13% os recursos federais vinculados à educação. Como nas constituições anteriores, permanece formalmente o princípio de que os estados podem fazer tudo o que não lhes é vedado.

A Constituição de 1988 surge no bojo do processo de redemocratização do País. Os capítulos referentes aos direitos e proteções sociais se ampliam, atingindo praticamente a todos os cidadãos e a todas as circunstâncias da vida. As garantias constitucionais se estendem, com detalhes e minudências, à saúde, à ciência e à tecnologia, ao meio ambiente, aos índios, à cultura, à assistência social, à comunicação social, à família, nela destacados crianças, idosos e deficientes. O conceito de cidadania assume novos contornos, mas a substância permanece inalterada.

Nas constituições anteriores, o Estado se outorgava a tarefa de atender a diferentes dimensões da cidadania.  A cidadania era, por assim dizer, objeto de assistência social por parte do Estado. Na Constituição de 1988, a cidadania, em suas inúmeras e enunciadas dimensões, vira preceito constitucional. O Estado passa a ser obrigado a atendê-las.  Os direitos do cidadão tornam-se obrigações do Estado.

Nesse contexto, é natural que sejam ampliadas as competências da União. Mantêm-se e ampliam-se suas competências gerais tradicionais (artigo 21), são destacadas e detalhadas as competências privativas para legislar sobre diversas matérias (art. 22), estabelecidas competências comuns entre a União, estados, Distrito Federal e municípios relativas a áreas de infraestrutura, meio ambiente e social (art. 23), além de competências legislativas concorrentes entre a União, estados e Distrito Federal (art. 24).

No caso das competências legislativas concorrentes, a competência da União limita-se a estabelecer normas gerais. No âmbito dos estados, a Constituição prevê, ainda, a instituição de regiões metropolitanas e microrregiões para fins de organização, planejamento e execução de funções comuns. Aumentam os valores das transferências para estados e municípios, mas reduz-se a competência dos estados para criar impostos, ampliando-se a da União.

Embora as alterações nos diferentes textos constitucionais não reflitam nem permitam capturar em detalhe as mudanças que atingiram o precário pacto federativo brasileiro, sua análise permite vislumbrar um movimento de crescente e ininterrupta centralização de responsabilidades, competências, recursos e poder no aparato central de governo. A única exceção foi a Constituição de 1946. Mas, mesmo nela as funções do governo central se ampliaram.

As primeiras constituições limitavam o governo federal às funções clássicas e comuns de defesa do País e da moeda, segurança e coordenação das comunicações. A sua capacidade legislativa era bastante restrita. Cabia aos estados a responsabilidade pela legislação, operação e financiamento dos serviços públicos no seu território. A partir de 1934, e sobretudo com o advento do Estado Novo, os estados começam a perder a sua identidade, a clareza sob suas competências e, inclusive, o controle sobre os recursos por eles arrecadados, que passam a financiar a própria União.

Ao mesmo tempo, ampliam-se as competências constitucionais da "União" as quais, tecnicamente, deveriam ser objeto de definição através de leis complementares que explicitassem os contornos das esferas de competência legislativa tanto da "União" como das unidades federativas. Na prática, isto não aconteceu. A União se autorregulou quase sempre impunemente. O princípio de que competiria a União estabelecer apenas as normas gerais virou letra morta. Na verdade, a União como um sistema de governo baseado em um pacto federativo nunca existiu no Brasil. O que sempre existiu foram disfarçadas duplicações daquele originário Estado Ibérico definido na carta outorgada por Dom João III a Tomé de Souza.

Embora a autonomia, os recursos e papel dos estados fossem sendo progressivamente tolhidos pela União, esses conseguiram manter sua autonomia para, entre outras coisas, criar e operar instituições financeiras, bem como para se endividar em níveis absolutamente incompatíveis com sua capacidade de pagamento. A inflação, acelerada pelo desacerto das políticas internas de gastos públicos, pelo protecionismo e pelas crises do petróleo tornou-se ainda mais grave com o aumento descontrolado das despesas do setor público, tanto no governo federal quanto nos estados, que se sucedeu à Constituição de 1988.


A crise dos estados reflete a crise do Estado Brasileiro e revela os primeiros ensaios de formação de uma sociedade que vai lenta e progressivamente se tornando independente do Estado. O Estado exauriu os recursos para manter, sob sua tutela, porções significativas do setor produtivo e de outras camadas da sociedade. Camadas da sociedade que se tornaram independentes do Estado começam a reivindicar retribuições pelos impostos que pagam, expondo a fragilidade do acordo oligárquico e corporativista que substituiu a ideia original de um autêntico Pacto Federativo.

O Estado tornou-se incapaz de prover recursos aos que o sustentam e também ficou sem forças para escolher prioridades e alocar seus escassos recursos de modo mais justo e equânime. Torna-se imperativo descobrir para o Brasil o papel original do Estado: o de ser instrumento de governo, dentro dos limites ditados pela sociedade.

Que mudança?

            A onda de reformas do Estado empreendidas pelo governo federal e por alguns governos estaduais na década de 90 não mexeu naquilo que é essencial: na mudança do papel do Estado como instrumento dum sistema de governo. De modo geral, o eixo central das reformas caminhou dentro de uma mesma lógica: a de repensar as formas de atuação do Estado e das articulações entre os três níveis de governo que compõem a Federação.

            Tanto no plano federal quanto no nível dos estados, a maior dificuldade de se promover uma verdadeira mudança reside em fatores de ordem cultural e política. Quatro desses fatores se destacam de modo particular.

            O primeiro deles é a cultura política, marcada pelo predomínio histórico dos donos do poder.  A cultura política do País permanece marcada pelo elitismo, pelo clientelismo e pelo fisiologismo. Mudar o papel do Estado sem alterar a cultura política e o próprio sistema político de representação esbarra necessariamente em sérias limitações e em toda sorte de dificuldades. A ausência de uma reforma política preliminar à mudança do papel do estado é uma dessas sérias limitações.

            O segundo obstáculo reside na cultura administrativa.  Duas dimensões merecem consideração. Da mesma forma que não existe uma separação nítida entre Estado e sociedade, também não existe uma separação entre governo e administração. O corporativismo e o cruzamento de interesses assumiram tal grau de interpenetração que governo e administração se confundem - o governo usa a administração como seus tentáculos e a administração envolve o governo nos seus próprios tentáculos.  Até mesmo instâncias de governo supostamente independentes - como os partidos políticos e os Poderes -  acabam se misturando e se confundindo na defesa de interesses corporativos e de autossustentação.  

Caracteriza ainda cultura administrativa seu forte caráter burocrático e corporativo, que permite à máquina estatal beneficiar-se e apoderar-se dos recursos da nação de forma desproporcional aos benefícios concedidos ao restante da população.  Apenas para citar um exemplo: os funcionários das empresas estatais conseguiram apropriar-se de 20% ou mais do patrimônio das mesmas para custear suas generosas pensões.

O funcionalismo público das três instâncias da Federação, incluindo inativos, totaliza milhões de pessoas e consome parcela significativa de todos os impostos arrecadados no País. Essa cultura é fortemente impermeável e resistente a qualquer propósito de reforma que ameace esses privilégios e usa as empresas estatais e a integridade do Estado como escudo para preservar interesses de caráter eminentemente corporativo.

A terceira característica cultural resiste na cultura técnica que se instalou na administração pública.  Em que pese os crescentes níveis de profissionalismo e competência técnica, essa cultura também se tornou persistentemente autossuficiente e formalista, vítima de sua formação e do próprio sucesso de algumas intervenções no contexto desenvolvimentista e fortemente intervencionista do passado.

As competências que permitiram o sucesso de grandes empreendimentos públicos nas décadas de 60 e 70 - sem qualquer necessidade do apoio ou da participação da sociedade - tornaram-se inadequadas para operar uma máquina estatal semifalida, com uma população mais consciente de seus direitos e para responder aos complexos desafios de uma sociedade que entra no Século XXI sem ter resolvido problemas já superados pelos países industrializados no final do Século XIX.   

            Finalmente, temos uma cultura de cidadania que se apresenta como o reverso da medalha da cultura política, que se educa sob a tutela do Estado e que se nutre do fisiologismo e do clientelismo.  As chamadas “conquistas” da Constituição de 1988 consistiram essencialmente em ampliar a noção de direitos constitucionais.  Os direitos constitucionais, que num sentido clássico constituíam-se em direitos do cidadão contra o poder do Estado Leviatã transformaram-se em deveres do Estado para com o cidadão.

O direito à proteção do cidadão contra a intrusão do Estado na vida neste mesmo cidadão transformou-se em direito de proteção pelo Estado.  Ademais, o crescimento da consciência dos direitos não se seguiu do aumento da consciência dos deveres. Como os indivíduos não se veem como parte da sociedade organizada subsumida pelo Estado, passa-se a impressão de que os recursos do Estado provêm de fontes outras que não a dos impostos pagos por esses mesmos indivíduos. 

Após mais de 20 anos de autoritarismo, centralismo e  aumento das históricas desigualdades sociais, o resgate de dívida social tornou-se numa bandeira nacional.  Face a recursos escassos, as ações de governo que se seguiram à Constituição de 1988, no entanto,  se voltaram primariamente ao “resgate da dívida social”  previdenciária,  de cujos benefícios o funcionalismo estatal se apoderou, em proporções significamente desiguais.   Embora claramente esta não seja a única causa do desajuste econômico e financeiro do setor público, certamente é uma de suas causas mais importantes, não apenas pelo vultosos valores envolvidos, mas pela persistência na manutenção de um gigantesco e obsoleto aparato estatal que claramente serve aos interesses dos governantes.
           
Essas características culturais estão profundamente enraizadas na formação histórica do País e remontam às matrizes ibéricas do processo de colonização.   O Brasil, como todos os demais países da América Latina, foi criado, organizado e dirigido durante séculos de fora para dentro e de cima para baixo.  É nesse pano de fundo, e face a um setor público que esgotou sua capacidade de arrecadação, sua capacidade de poupança e investimento e sua capacidade de governar com os instrumentos convencionais de ação e intervenção direta, que surge a premência duma mudança radical na relação Estado-Sociedade no Brasil.

             Essa mudança, naturalmente, encontra resistências no seio da população.  Em particular, as expectativas negativas da população são nutridas pelos mais diversos grupos de interesse que partem de motivações e ideologias as mais diversas - uns para manter-se no poder, outros para conquistá-lo.  Essas percepções incluem sentimentos e reações do tipo:

Reformar o Estado é neoliberalismo puro
Diminuir o tamanho do Estado é medida antissocial
Diminuir funcionários públicos é promover a exclusão social
Criticar as estatais é antipatriótico e entreguista
Privatizar é dilapidar o patrimônio nacional
Municipalizar ações é sobrecarregar os municípios
Descentralizar é jogar as responsabilidades nas costas dos municípios e da comunidade
Gestão de qualidade é transformar o Estado em empresa
Mudar as regras da previdência é massacrar os aposentados
Terceirizar é conspirar contra os direitos sociais dos funcionários
Essas desconfianças do povo são reforçadas por leituras políticas que buscam fazer crer que essas reações são óbvias e inelutáveis, e pela incapacidade de governos em promover uma adequada comunicação das mudanças - eles próprios nem sempre convencidos das suas próprias propostas.  Esse medo do óbvio reforça as tendências antimudança de governantes e políticos _ “será que o povo vai entender?” e levam à formulação de estratégias negativistas e improdutivas, decorrentes da interpretação obvialista: 


... é óbvio que a “reforma” do Estado só deve ser feita quando não houver mais jeito
... é óbvio que ela é um mal necessário
... é óbvio que o governante que for condenado a fazê-la vai se dar mal nas urnas
... é óbvio que o povo não vai entender nada
... é óbvio que os representantes políticos do corporativismo, da irracionalidade e do atraso é que vão faturar em cima
... é óbvio que a opinião pública vai ficar contra
... é óbvio... etc.
            O desinteresse da maioria dos políticos e governantes por uma verdadeira  mudança, a interpretação obvialista e a incapacidade de lidar adequadamente com a própria ideia de mudança leva frequentemente os governos a tomarem atitudes pragmáticas, isoladas e tópicas que reforçam, ainda mais, os sentimentos negativos e o senso de inutilidade e de “maldade” que estaria por trás da mudança.  Confunde-se, por exemplo, reforma administrativa com mudança do papel do Estado.  Confundem-se atos administrativos com atos de governo.

Daí decorrem ações arbitrárias, extemporâneas e inócuas de corte de despesas, cortes de pessoal, centralizações e descentralizações aleatórias, mudança no nome ou estatuto jurídico das organizações, substituição de mudanças profundas por iniciativas cosméticas e bem maquiadas de desenvolvimento organizacional, organização e métodos, iniciativas levianas de utilização de instrumentos de qualidade total ou conceitos que entram e saem da ordem do dia dos consultores organizacionais, como no caso da reengenharia.

Da mesma forma, abusa-se de terceirização, que cai como uma luva para o clientelismo.  Esse mecanismo protege as administrações dos potenciais rigores da lei que, na ingenuidade de seus bons propósitos, limita em 60% os gastos com pessoal, mas deixa a descoberto a ilimitada criatividade dos administradores públicos para contratar serviços de forma terceirizada. Tudo isso serve como estratégia para não se fazer a mudança.

            Mas, em que pese a essas resistências internas e externas, a mudança da relação Estado-Sociedade no Brasil acabará acontecendo: ou de forma ordenada ou como resultado trágico duma situação de anomia e radical insegurança das pessoas.  Sob os efeitos da Constituição de 1988 e a aceleração do processo de integração do Brasil na economia internacional iniciada no período do Governo Collor, esboços de mudança começam a surgir, aqui e ali, especialmente em alguns governos estaduais e municipais. 

A exaustão da capacidade financeira dos governos estaduais foi acelerada por uma série de fatores, dentre os quais se destacam: o brutal crescimento do custeio do setor público, devido em grande parte ao “resgate da dívida social do funcionalismo”; o aumento de encargos e da indefinição de responsabilidades entre as instâncias federativas decorrentes da Constituição de 1988, sem o correspondente repasse de recursos; a crescente corrida do governo federal para recompor os recursos que julgou haver perdido na referida Constituição através de mecanismos como o FEF, Lei Kandir, CPMF, etc.;  a crescente perda de capacidade de arrecadação própria pelos estados; e, de modo particular, o final da inflação, que servira, no passado, para camuflar, pelo ilusionismo orçamentário,  as crescentes dificuldades de financiamento do setor público. 

Ao mesmo tempo, cresceram as demandas da população por serviços básicos e novos direitos, bem como as demandas do setor produtivo por uma economia menos regulada e mais competitiva, capaz de dar o salto de produtividade e qualidade requeridos pela nova economia globalizada.
           
            Essas carências, aliadas às novas exigências que se impõem, passaram a requerer uma revisão profunda dos papéis do Estado, tanto no sentido de abandonar determinadas atividades, cuidar melhor de outras e, sobretudo, alterar seus papéis e formas de atuação.  Não se trata de uma reforma administrativa.  Não se trata de capacitar o governo a fazer ações administrativas de maneira mais eficiente.  Trata-se de reestruturar o governo para governar, para fazer ações de governo.  Tais reformas requerem mudanças no panorama legal, um reordenamento das instituições, e, mais difícil, mudanças nas maneiras de ver, entender e agir das pessoas em relação a essas mudanças.