quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Sobre pensamento utópico e mercado

De Roger Scruton na Veja desta semana

"O pensamento utópico... serve de alívio para a difícil tarefa de ver as coisas como elas realmente são."

"O pensamento utópico... é uma forma de vício, um curto-circuito que afasta os indivíduos da razão e do questionamento racional e efetivo."

"O pensamento utópico nos remete diretamente para um objetivo, passando por cima da viabilidade do projeto."

"É fácil digerir (o pensamento utópico) e se embeber do seu otimismo mal-intencionado e sem fundamento. O problema vem depois, quando a utopia termina em fiasco."

De Maílson da Nóbrega, também na Veja desta semana

"Mercado interno e mercado externo são meras expressões geográficas do destino da produção nacional. Uma parte é vendida aqui, outra lá fora. O que vale para o produtor é a demanda, venha ela de um brasileiro ou  de quem reside no exterior. O que conta é sua capacidade de competir com produtos estrangeiros, aqui ou em outros países..."

"O mercado interno, cabe lembrar, é também o território dos consumidores brasileiros, e não apenas o dos produtores nacionais... Para certas correntes, defender o mercado interno significa proteger os produtores, blindando-o da concorrência externa via barreiras tarifárias e não tarifárias às importações. Preservam-se o lucro e o emprego de uma minoria, em prejuízo da maioria, os consumidores."

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O Estado e a crise de governabilidade

             
O que segue é resultado de longas conversas com uma das pessoas a quem tenho a honra de chamar de amigo, o Dr. João Batista de Oliveira. João articulou de forma sistemática, com sua proverbial competência, o que ambos entendemos como a exaustão dum período histórico do Brasil.
Que crise?

O Estado se encontra sob suspeita. Os governos têm contribuído para aumentar a suspeição.  Iniciativas de mudança que se intitulam “reforma de Estado” exacerbam as suspeitas que pairam sob ele.  A globalização e seus efeitos imprevisíveis e incontroláveis levam todas essas suspeições ao paroxismo.

No III Milênio, assistimos em todo o mundo o esgotamento do modelo de estado-nacional consolidado no Século XIX.   O fim da guerra fria e a busca de identidade nacional baseada nas etnias e no fundamentalismo religioso redesenham o mapa geográfico de alguns países da Europa e do Oriente Médio. Ao mesmo tempo, clássicas noções sobre o papel do Estado - defender fronteiras, preservar a soberania nacional ou proteger a moeda - vão perdendo sentido na medida em que avança a globalização dos mercados financeiros. 

Em países como o Brasil, assiste-se a exaustão do modelo do estado-gerente e promotor do desenvolvimento: o estado dirigista. O Estado perdeu o controle sobre o seu próprio crescimento e se tornou incapaz de se autolimitar, aumentando exponencialmente sua interferência sobre o cotidiano dos cidadãos, empresas e sobre a vida dos governos subnacionais.  O Pacto Federativo torna-se cada vez mais obscuro, frágil e vulnerável a mudanças nas regras do jogo tributário.

Às críticas ao desempenho do Estado, particularmente advindas dos organismos internacionais e dos defensores do chamado “estado mínimo” - e que frequentemente são subsumidas sob o rótulo de neoliberalismo - se somam essas “suspeitas” que pairam sobre o Estado.  Os governos são criticados por sua ineficiência e corrupção.   São instados a privatizar seja por razões de incompetência gerencial, seja pela incapacidade de investir em setores críticos ou seja por convicções ideológicas sobre os papéis do Estado. A privatização não se limita a atividades produtivas. Já é comum estender-se à provisão de serviços sociais e outros serviços de natureza pública.

Alguns grupos da sociedade civil aplaudem a redução e reconversão do Estado. Certas corporações parasitárias do Estado, as classes políticas e tecnoburocráticas, sindicatos e movimentos como o MST lutam com unhas e dentes pela preservação do “patrimônio público” que lhes garante o sustento e o poder.

O Estado já não cria mais empregos em número significativo, nem na economia real, nem nas empresas estatais, nem dentro da máquina pública. Até mesmo as moedas de troca usadas para clientelismo vão se tornando mais escassas.  A maioria da população empregada que, depois do controle da inflação, começou a ter acesso a comida e a algumas comodidades triviais, mas que ainda não teve acesso a serviços adequados de educação, saúde e segurança, também se preocupa com a reestruturação da máquina pública.

            O País está no meio duma crise de governabilidade. O Estado Brasileiro assumiu, sobretudo a partir da Constituição de 1988, uma vasta gama de “deveres” correspondentes aos novos “direitos constitucionais” dos diversos grupos da sociedade. Essas obrigações são, não apenas maiores, mas mais complexas e caras. A distribuição de competências entre as instâncias da Federação tornou-se mais obscura, dentro do regime de competências concorrentes.  Os recursos, no entanto, não aumentaram na proporção dos encargos. Ao contrário, aumentaram-se os gastos com o custeio da máquina pública, reduziram-se os gastos com investimentos e elevaram-se significativamente os impostos. 

A crise do Estado contemporâneo assume contornos mais dramáticos e peculiares no Brasil, e tem como pano de fundo a origem ibérica do País que expõe a fragilidade das relações entre Estado e Sociedade, bem como a fragilidade do Pacto Federativo.   A crise do Estado também é uma crise dos estados.
 
Que Estado? 

A idéia de mudança na relação Estado-Sociedade se baseia na presunção de que a tensão constitutiva entre Estado e Sociedade esteja em desequilíbrio.  Quando estável, esta tensão pressupõe uma Sociedade em que diferentes atores pressionam um Estado equidistante de interesses localizados e comprometido, antes de tudo, com a consecução dos fins para o qual a Sociedade o instituiu.

Um dos desafios de mudar o papel do Estado no Brasil - e uma das explicações pelo fracasso de "reformas do Estado" - é que, no Brasil, a Sociedade é cativa do Estado. Trata-se duma tessitura única. À falta de uma real pressão externa da Sociedade, o Estado se modifica sempre o mínimo possível e, tão só, para acomodar dentro do seu tecido interesses dos setores mais organizados da Sociedade que dele dependem. Esse Estado, no Brasil, inclui não só o aparato administrativo e os políticos, mas, pela sua formação patrimonialista e corporativa, subsume outras parcelas ativas da Sociedade.

A experiência de formação dos modernos estados europeus difere da brasileira. A Europa em geral viveu a experiência da família, da comunidade, do povo e da nação como formas naturais de vida humana associada. Lá, por razões estritamente pragmáticas, povos e nações decidiram conscientemente se organizar em sociedades.

Foi a necessidade pragmática de unir diferentes povos e nações que levou à criação simultânea de duas formas artificiais de vida humana associada: o Estado e a Sociedade. A Sociedade nasce - através do que Rousseau denominou de "contrato social"  -  com o objetivo puramente utilitário de preservar os interesses econômicos desses povos.

O Estado moderno surge concomitantemente com a Sociedade. O Estado é requisito funcional para a preservação do contrato social. Como tal, ele se consubstancia em instrumento político de manutenção da coesão interna e de luta contra o banditismo, assegurando, assim, as condições mínimas para o desenvolvimento do capitalismo moderno.

A experiência norteamericana, por sua vez, evolui a partir de origens bastante diferentes. O binômio Estado-Sociedade na Inglaterra criou condições intoleráveis para determinados enclaves sociais. A emigração foi a maneira que tais grupos encontraram para fugir dum Estado opressor: o Leviatã Hobbesiano.

Ao chegarem no Novo Mundo esses mesmos grupos preocuparam-se em constituir “estados" livres e independentes, abertos a diferentes formas de governo. Tal determinação se refletiu nas formas diferenciadas de tratar questões econômicas, comerciais, jurídicas e político-institucionais: da permissão ou proibição do tráfico de escravos e da escravatura e até mesmo de distintos regimes jurídicos como por exemplo a Lusiânia com seu Código Napoleônico e outros estados com a common law ou direito consuetudinário. O Federalismo dos Federalist Papers reflete o anseio de preservar a independência das diferentes unidades federativas na constituição de suas próprias regras de governo e de convivialidade.

A Guerra Civil, e a vitória dos aliados de Lincoln, marca o fim do ideal federalista e o início de um movimento da nação norteamericana rumo à consolidação de uma união semifederativa via Estado Moderno. Ainda assim, a Constituição Norteamericana mantém um grau de federalismo e descentralização incomparavelmente superior ao que jamais existiu no Brasil.

A experiência brasileira difere radicalmente dessas duas situações. Estado e Sociedade vieram prontos de Portugal. A carta outorgada por Dom João III a Tomé de Souza, conhecida como o Regimento de Tomé de Souza é uma autêntica constituição. Com ela, o País recebeu governo, instituições, e até mesmo municípios, antes de haver um povo e uma nação capazes de decidir pela constituição do binômio Estado-Sociedade.

A análise das constituições brasileiras, a partir da Constituição do Império de 1824, passando pelas Constituições da República de 1891 e de 1934, pela Constituição do Estado Novo de 1937, pela Constituição da redemocratização de 1946, do Regime Militar de 1967 e da redemocratização de 1988 refletem a vocação centralista do Estado Brasileiro, apesar de surtos federalistas esporádicos. Esses surtos, na verdade, têm menos a ver com uma vocação federalista do que com as necessidades de poder dos grupos que ora se viam ameaçados pelo excessivo poder central, ora pelo excessivo poder dos estados. Um exame da trajetória constitucional das competências da União e dos estados, bem como da base fiscal sobre a qual deveria se assentar uma eventual autonomia dos estados, demonstra a mencionada vocação centralista do Estado Brasileiro.

Na Constituição do Império o poder central do Estado se concentra nas funções clássicas de manutenção da lei e da ordem. O aparato administrativo do Estado, isto é, a administração pública tem como objetivo precípuo cumprir com essas funções "clássicas" do Estado. Mas, embora o poder central nem se comprometa nem se obrigue a outras tarefas e missões que não a manutenção da lei e da ordem, os tributos são todos coletados pelo e para o Império.

A Constituição da República, da lavra de Rui Barbosa, inspira-se nos ideais libertários da Inconfidência Mineira -  frustrados pela Independência -  e na cartilha federalista da Constituição Norteamericana. Com efeito, a Inconfidência Mineira _ e os movimentos que se lhe seguiram _ ensaiava não só a independência em relação a Portugal mas também a separação entre Estado e Sociedade.

A Independência de Portugal e a Constituição do Império não permitiram avançar nessa direção. Nelas cristalizava-se apenas uma mudança do endereço da residência do dono do País. Mas alguns ideais da Inconfidência sobreviveram e encontraram no federalismo norteamericano uma forma aceitável de articulação, ainda que a experiência brasileira não fosse nem sequer semelhante a que deu origem aquele federalismo.

Nessa Constituição Republicana, uma "União", isto é, um "poder central", cuida essencialmente da lei e da ordem e de apresentar anualmente ao Congresso Nacional uma prestação de contas sobre o "estado da nação". Sua única interferência nos negócios dos estados visa assegurar-lhes ajuda em caso de calamidades. Cabe aos estados (artigo 5) prover, a expensas próprias, suas necessidades de governo e administração. Tudo lhes é permitido, menos o que é expressamente vedado pela Constituição e o que fere a autonomia municipal.

Tal restrição, a partir daí, reaparece em todas as Constituições subsequentes. Os impostos federais e estaduais são nitidamente separados, cabendo aos estados o direito de criar outros impostos. A Constituição da República apresenta um forte vezo descentralizador. Esse vezo reflete a força política das antigas províncias que apoiaram os militares na derrubada do Império. Nelas se aglutinavam as convicções libertárias da Inconfidência Mineira não respondidas pela Independência, bem como convicções republicanas e federalistas. Os interesses das ex-províncias mais fortes, agora nominados de "estados", encontraram finalmente seus espaços no procênio da Primeira República.

O ideário das revoluções de 30 e 32  _  que se contrapunham à República do "café com leite", isto é, à prevalência de estados fortes como Minas Gerais e São Paulo e ao predomínio de certos governadores _  e o impacto da queda das bolsas de valores em todo o mundo ressoam na Constituição de 1934. Legitimado por Lord Keynes e pelo New Deal, o centralismo volta com força e, com ele, ampliam-se os poderes de intervenção do Estado, via governo central, nos estados e na economia.

O artigo 5º, por exemplo, prevê a exploração de serviços pela "União" e atribui a esta última a prerrogativa de estabelecer um plano viário e uma lei de diretrizes e bases da educação nacional.  Introduz, também, o conceito de "competências concorrentes" entre União e estados, nelas incluídas a saúde, cultura, colonização e instrução pública. Embora os estados mantenham seu poder de tributação, aquelas competências conjuntas passam a justificar uma contribuição de 30% dos impostos por eles arrecadados para a União, e outros 20% para os municípios. Essa mesma Constituição abre espaço para o corporativismo incentivado pelo Estado ao reservar um quinto das vagas da Câmara Federal para deputados eleitos pelas associações profissionais, como contrapeso adicional à eventual pressão dos governadores.

A Constituição de 1934, ao tentar uniformizar o poder dos estados eliminando o predomínio de uns sobre outros, acabou por reforçar o poder central. Subjacente a ela, está a idéia de que só um governo central forte pode arbitrar as demandas dos estados e coibir a truculência político-econômica dos governos estaduais mais fortes. O golpe de Getúlio veio enrolado nesta bandeira que acabou por se desfraldar totalmente na ditadura do Estado Novo.

A Constituição de 1937 concentra o poder num governo central. Ela não só elimina o conceito de competências concorrentes, mas também deixa de explicitar as competências do governo central _ exceto a de formular diretrizes para a educação e cultura. As atribuições aos estados se dão de forma implícita. Não há preocupação de estabelecer limites de competência entre os estados já que o governo central tem controle total sobre eles. Por exemplo, a identidade política dos estados fica subordinada à capacidade fiscal: aqueles incapazes de se autocustear são transformados em território.

Por outro lado, parte dos senadores é nomeada pelos governadores interventores, os quais também possuem poder de veto nas eleições. As contas sobre os recursos arrecadados são prestadas não aos representantes eleitos dos contribuintes mas a um outro aparato administrativo: o artigo 114 cria o Tribunal de Contas, recuperando uma velha instituição criada na Carta de Tomé de Souza "para promover à devassa anual dos feitos da administração pública, inclusive do Governador Geral". Por fim, a interferência do Estado se estende formalmente à ordem econômica em geral através de capítulo específico.

A Constituição do pós-guerra é nitidamente descentralizadora. Sua preocupação maior é a de expurgar o vezo autoritário e centralista da Constituição do Estado Novo. O capítulo sobre as competências da União e dos estados mantém-se relativamente vago, como na Constituição de 37, e se preserva o capítulo sobre a ordem econômica.

Pela primeira vez vinculam-se recursos federais ao desenvolvimento da Amazônia e do Nordeste, bem como se prevê a vinculação de recursos federais e estaduais à educação. Os estados continuam a contribuir para a União e seus municípios, mas alteram-se as alíquotas.  Embora o tom geral da Constituição seja o do fortalecimento do poder estadual e dos municípios, ela não oferece mecanismos capazes de impedir o ativismo e a omnipresença política, social, econômica e cultural do sistema de governo centralizado do Estado Brasileiro que responde pelo apelido de União.

Em 1967, a reforma constitucional e suas emendas durante o período militar concentram ainda mais o poder no aparato central de governo, isto é, na União. A ela se agrega como uma de suas competências, por exemplo, "estabelecer e executar planos regionais de desenvolvimento". Menciona-se pela primeira vez a criação de um sistema federal de ensino, ainda que de caráter supletivo, nos estritos limites das deficiências locais. Os fundos de participação dos estados e municípios são criados, bem como se ampliam de 10% para 13% os recursos federais vinculados à educação. Como nas constituições anteriores, permanece formalmente o princípio de que os estados podem fazer tudo o que não lhes é vedado.

A Constituição de 1988 surge no bojo do processo de redemocratização do País. Os capítulos referentes aos direitos e proteções sociais se ampliam, atingindo praticamente a todos os cidadãos e a todas as circunstâncias da vida. As garantias constitucionais se estendem, com detalhes e minudências, à saúde, à ciência e à tecnologia, ao meio ambiente, aos índios, à cultura, à assistência social, à comunicação social, à família, nela destacados crianças, idosos e deficientes. O conceito de cidadania assume novos contornos, mas a substância permanece inalterada.

Nas constituições anteriores, o Estado se outorgava a tarefa de atender a diferentes dimensões da cidadania.  A cidadania era, por assim dizer, objeto de assistência social por parte do Estado. Na Constituição de 1988, a cidadania, em suas inúmeras e enunciadas dimensões, vira preceito constitucional. O Estado passa a ser obrigado a atendê-las.  Os direitos do cidadão tornam-se obrigações do Estado.

Nesse contexto, é natural que sejam ampliadas as competências da União. Mantêm-se e ampliam-se suas competências gerais tradicionais (artigo 21), são destacadas e detalhadas as competências privativas para legislar sobre diversas matérias (art. 22), estabelecidas competências comuns entre a União, estados, Distrito Federal e municípios relativas a áreas de infraestrutura, meio ambiente e social (art. 23), além de competências legislativas concorrentes entre a União, estados e Distrito Federal (art. 24).

No caso das competências legislativas concorrentes, a competência da União limita-se a estabelecer normas gerais. No âmbito dos estados, a Constituição prevê, ainda, a instituição de regiões metropolitanas e microrregiões para fins de organização, planejamento e execução de funções comuns. Aumentam os valores das transferências para estados e municípios, mas reduz-se a competência dos estados para criar impostos, ampliando-se a da União.

Embora as alterações nos diferentes textos constitucionais não reflitam nem permitam capturar em detalhe as mudanças que atingiram o precário pacto federativo brasileiro, sua análise permite vislumbrar um movimento de crescente e ininterrupta centralização de responsabilidades, competências, recursos e poder no aparato central de governo. A única exceção foi a Constituição de 1946. Mas, mesmo nela as funções do governo central se ampliaram.

As primeiras constituições limitavam o governo federal às funções clássicas e comuns de defesa do País e da moeda, segurança e coordenação das comunicações. A sua capacidade legislativa era bastante restrita. Cabia aos estados a responsabilidade pela legislação, operação e financiamento dos serviços públicos no seu território. A partir de 1934, e sobretudo com o advento do Estado Novo, os estados começam a perder a sua identidade, a clareza sob suas competências e, inclusive, o controle sobre os recursos por eles arrecadados, que passam a financiar a própria União.

Ao mesmo tempo, ampliam-se as competências constitucionais da "União" as quais, tecnicamente, deveriam ser objeto de definição através de leis complementares que explicitassem os contornos das esferas de competência legislativa tanto da "União" como das unidades federativas. Na prática, isto não aconteceu. A União se autorregulou quase sempre impunemente. O princípio de que competiria a União estabelecer apenas as normas gerais virou letra morta. Na verdade, a União como um sistema de governo baseado em um pacto federativo nunca existiu no Brasil. O que sempre existiu foram disfarçadas duplicações daquele originário Estado Ibérico definido na carta outorgada por Dom João III a Tomé de Souza.

Embora a autonomia, os recursos e papel dos estados fossem sendo progressivamente tolhidos pela União, esses conseguiram manter sua autonomia para, entre outras coisas, criar e operar instituições financeiras, bem como para se endividar em níveis absolutamente incompatíveis com sua capacidade de pagamento. A inflação, acelerada pelo desacerto das políticas internas de gastos públicos, pelo protecionismo e pelas crises do petróleo tornou-se ainda mais grave com o aumento descontrolado das despesas do setor público, tanto no governo federal quanto nos estados, que se sucedeu à Constituição de 1988.


A crise dos estados reflete a crise do Estado Brasileiro e revela os primeiros ensaios de formação de uma sociedade que vai lenta e progressivamente se tornando independente do Estado. O Estado exauriu os recursos para manter, sob sua tutela, porções significativas do setor produtivo e de outras camadas da sociedade. Camadas da sociedade que se tornaram independentes do Estado começam a reivindicar retribuições pelos impostos que pagam, expondo a fragilidade do acordo oligárquico e corporativista que substituiu a ideia original de um autêntico Pacto Federativo.

O Estado tornou-se incapaz de prover recursos aos que o sustentam e também ficou sem forças para escolher prioridades e alocar seus escassos recursos de modo mais justo e equânime. Torna-se imperativo descobrir para o Brasil o papel original do Estado: o de ser instrumento de governo, dentro dos limites ditados pela sociedade.

Que mudança?

            A onda de reformas do Estado empreendidas pelo governo federal e por alguns governos estaduais na década de 90 não mexeu naquilo que é essencial: na mudança do papel do Estado como instrumento dum sistema de governo. De modo geral, o eixo central das reformas caminhou dentro de uma mesma lógica: a de repensar as formas de atuação do Estado e das articulações entre os três níveis de governo que compõem a Federação.

            Tanto no plano federal quanto no nível dos estados, a maior dificuldade de se promover uma verdadeira mudança reside em fatores de ordem cultural e política. Quatro desses fatores se destacam de modo particular.

            O primeiro deles é a cultura política, marcada pelo predomínio histórico dos donos do poder.  A cultura política do País permanece marcada pelo elitismo, pelo clientelismo e pelo fisiologismo. Mudar o papel do Estado sem alterar a cultura política e o próprio sistema político de representação esbarra necessariamente em sérias limitações e em toda sorte de dificuldades. A ausência de uma reforma política preliminar à mudança do papel do estado é uma dessas sérias limitações.

            O segundo obstáculo reside na cultura administrativa.  Duas dimensões merecem consideração. Da mesma forma que não existe uma separação nítida entre Estado e sociedade, também não existe uma separação entre governo e administração. O corporativismo e o cruzamento de interesses assumiram tal grau de interpenetração que governo e administração se confundem - o governo usa a administração como seus tentáculos e a administração envolve o governo nos seus próprios tentáculos.  Até mesmo instâncias de governo supostamente independentes - como os partidos políticos e os Poderes -  acabam se misturando e se confundindo na defesa de interesses corporativos e de autossustentação.  

Caracteriza ainda cultura administrativa seu forte caráter burocrático e corporativo, que permite à máquina estatal beneficiar-se e apoderar-se dos recursos da nação de forma desproporcional aos benefícios concedidos ao restante da população.  Apenas para citar um exemplo: os funcionários das empresas estatais conseguiram apropriar-se de 20% ou mais do patrimônio das mesmas para custear suas generosas pensões.

O funcionalismo público das três instâncias da Federação, incluindo inativos, totaliza milhões de pessoas e consome parcela significativa de todos os impostos arrecadados no País. Essa cultura é fortemente impermeável e resistente a qualquer propósito de reforma que ameace esses privilégios e usa as empresas estatais e a integridade do Estado como escudo para preservar interesses de caráter eminentemente corporativo.

A terceira característica cultural resiste na cultura técnica que se instalou na administração pública.  Em que pese os crescentes níveis de profissionalismo e competência técnica, essa cultura também se tornou persistentemente autossuficiente e formalista, vítima de sua formação e do próprio sucesso de algumas intervenções no contexto desenvolvimentista e fortemente intervencionista do passado.

As competências que permitiram o sucesso de grandes empreendimentos públicos nas décadas de 60 e 70 - sem qualquer necessidade do apoio ou da participação da sociedade - tornaram-se inadequadas para operar uma máquina estatal semifalida, com uma população mais consciente de seus direitos e para responder aos complexos desafios de uma sociedade que entra no Século XXI sem ter resolvido problemas já superados pelos países industrializados no final do Século XIX.   

            Finalmente, temos uma cultura de cidadania que se apresenta como o reverso da medalha da cultura política, que se educa sob a tutela do Estado e que se nutre do fisiologismo e do clientelismo.  As chamadas “conquistas” da Constituição de 1988 consistiram essencialmente em ampliar a noção de direitos constitucionais.  Os direitos constitucionais, que num sentido clássico constituíam-se em direitos do cidadão contra o poder do Estado Leviatã transformaram-se em deveres do Estado para com o cidadão.

O direito à proteção do cidadão contra a intrusão do Estado na vida neste mesmo cidadão transformou-se em direito de proteção pelo Estado.  Ademais, o crescimento da consciência dos direitos não se seguiu do aumento da consciência dos deveres. Como os indivíduos não se veem como parte da sociedade organizada subsumida pelo Estado, passa-se a impressão de que os recursos do Estado provêm de fontes outras que não a dos impostos pagos por esses mesmos indivíduos. 

Após mais de 20 anos de autoritarismo, centralismo e  aumento das históricas desigualdades sociais, o resgate de dívida social tornou-se numa bandeira nacional.  Face a recursos escassos, as ações de governo que se seguiram à Constituição de 1988, no entanto,  se voltaram primariamente ao “resgate da dívida social”  previdenciária,  de cujos benefícios o funcionalismo estatal se apoderou, em proporções significamente desiguais.   Embora claramente esta não seja a única causa do desajuste econômico e financeiro do setor público, certamente é uma de suas causas mais importantes, não apenas pelo vultosos valores envolvidos, mas pela persistência na manutenção de um gigantesco e obsoleto aparato estatal que claramente serve aos interesses dos governantes.
           
Essas características culturais estão profundamente enraizadas na formação histórica do País e remontam às matrizes ibéricas do processo de colonização.   O Brasil, como todos os demais países da América Latina, foi criado, organizado e dirigido durante séculos de fora para dentro e de cima para baixo.  É nesse pano de fundo, e face a um setor público que esgotou sua capacidade de arrecadação, sua capacidade de poupança e investimento e sua capacidade de governar com os instrumentos convencionais de ação e intervenção direta, que surge a premência duma mudança radical na relação Estado-Sociedade no Brasil.

             Essa mudança, naturalmente, encontra resistências no seio da população.  Em particular, as expectativas negativas da população são nutridas pelos mais diversos grupos de interesse que partem de motivações e ideologias as mais diversas - uns para manter-se no poder, outros para conquistá-lo.  Essas percepções incluem sentimentos e reações do tipo:

Reformar o Estado é neoliberalismo puro
Diminuir o tamanho do Estado é medida antissocial
Diminuir funcionários públicos é promover a exclusão social
Criticar as estatais é antipatriótico e entreguista
Privatizar é dilapidar o patrimônio nacional
Municipalizar ações é sobrecarregar os municípios
Descentralizar é jogar as responsabilidades nas costas dos municípios e da comunidade
Gestão de qualidade é transformar o Estado em empresa
Mudar as regras da previdência é massacrar os aposentados
Terceirizar é conspirar contra os direitos sociais dos funcionários
Essas desconfianças do povo são reforçadas por leituras políticas que buscam fazer crer que essas reações são óbvias e inelutáveis, e pela incapacidade de governos em promover uma adequada comunicação das mudanças - eles próprios nem sempre convencidos das suas próprias propostas.  Esse medo do óbvio reforça as tendências antimudança de governantes e políticos _ “será que o povo vai entender?” e levam à formulação de estratégias negativistas e improdutivas, decorrentes da interpretação obvialista: 


... é óbvio que a “reforma” do Estado só deve ser feita quando não houver mais jeito
... é óbvio que ela é um mal necessário
... é óbvio que o governante que for condenado a fazê-la vai se dar mal nas urnas
... é óbvio que o povo não vai entender nada
... é óbvio que os representantes políticos do corporativismo, da irracionalidade e do atraso é que vão faturar em cima
... é óbvio que a opinião pública vai ficar contra
... é óbvio... etc.
            O desinteresse da maioria dos políticos e governantes por uma verdadeira  mudança, a interpretação obvialista e a incapacidade de lidar adequadamente com a própria ideia de mudança leva frequentemente os governos a tomarem atitudes pragmáticas, isoladas e tópicas que reforçam, ainda mais, os sentimentos negativos e o senso de inutilidade e de “maldade” que estaria por trás da mudança.  Confunde-se, por exemplo, reforma administrativa com mudança do papel do Estado.  Confundem-se atos administrativos com atos de governo.

Daí decorrem ações arbitrárias, extemporâneas e inócuas de corte de despesas, cortes de pessoal, centralizações e descentralizações aleatórias, mudança no nome ou estatuto jurídico das organizações, substituição de mudanças profundas por iniciativas cosméticas e bem maquiadas de desenvolvimento organizacional, organização e métodos, iniciativas levianas de utilização de instrumentos de qualidade total ou conceitos que entram e saem da ordem do dia dos consultores organizacionais, como no caso da reengenharia.

Da mesma forma, abusa-se de terceirização, que cai como uma luva para o clientelismo.  Esse mecanismo protege as administrações dos potenciais rigores da lei que, na ingenuidade de seus bons propósitos, limita em 60% os gastos com pessoal, mas deixa a descoberto a ilimitada criatividade dos administradores públicos para contratar serviços de forma terceirizada. Tudo isso serve como estratégia para não se fazer a mudança.

            Mas, em que pese a essas resistências internas e externas, a mudança da relação Estado-Sociedade no Brasil acabará acontecendo: ou de forma ordenada ou como resultado trágico duma situação de anomia e radical insegurança das pessoas.  Sob os efeitos da Constituição de 1988 e a aceleração do processo de integração do Brasil na economia internacional iniciada no período do Governo Collor, esboços de mudança começam a surgir, aqui e ali, especialmente em alguns governos estaduais e municipais. 

A exaustão da capacidade financeira dos governos estaduais foi acelerada por uma série de fatores, dentre os quais se destacam: o brutal crescimento do custeio do setor público, devido em grande parte ao “resgate da dívida social do funcionalismo”; o aumento de encargos e da indefinição de responsabilidades entre as instâncias federativas decorrentes da Constituição de 1988, sem o correspondente repasse de recursos; a crescente corrida do governo federal para recompor os recursos que julgou haver perdido na referida Constituição através de mecanismos como o FEF, Lei Kandir, CPMF, etc.;  a crescente perda de capacidade de arrecadação própria pelos estados; e, de modo particular, o final da inflação, que servira, no passado, para camuflar, pelo ilusionismo orçamentário,  as crescentes dificuldades de financiamento do setor público. 

Ao mesmo tempo, cresceram as demandas da população por serviços básicos e novos direitos, bem como as demandas do setor produtivo por uma economia menos regulada e mais competitiva, capaz de dar o salto de produtividade e qualidade requeridos pela nova economia globalizada.
           
            Essas carências, aliadas às novas exigências que se impõem, passaram a requerer uma revisão profunda dos papéis do Estado, tanto no sentido de abandonar determinadas atividades, cuidar melhor de outras e, sobretudo, alterar seus papéis e formas de atuação.  Não se trata de uma reforma administrativa.  Não se trata de capacitar o governo a fazer ações administrativas de maneira mais eficiente.  Trata-se de reestruturar o governo para governar, para fazer ações de governo.  Tais reformas requerem mudanças no panorama legal, um reordenamento das instituições, e, mais difícil, mudanças nas maneiras de ver, entender e agir das pessoas em relação a essas mudanças.

O que são Estado, Massa, Sociedade, Nação, Povo, Comunidade…

Todas as diferentes formas de associação humana assumem uma certa concepção da natureza humana. Uma certa antropologia.

Todas as forma de associação humana aspiram ser um espaço existencial onde há um ordenamento “correto” das relações entre as pessoas.

Associações humanas dependem, pois, dum certo entendimento do que é, afinal, o “ser humano”, e seu “desenho” ou “forma” reflete necessariamente tal entendimento.

As tensões acerca dos indivíduos

Em cada homem coexiste tensão entre os imperativos da individualidade e da gregariedade.

Em cada homem coexiste tensão entre os imperativos da razão funcional (a inteligência a serviço da sobrevivência e da segurança material) e da razão substantiva (a inteligência a serviço das necessidades do outro que não eu mesmo).

Em cada homem coexiste tensão entre os imperativos históricos e os escatológicos (o “aqui e o agora” e o “final dos tempos”).

O homem moderno ou rejeita a existência dessa tensão ou a elimina pela subsunção dum polo no outro.

Há formas de associação que transcendem seus membros individuais no sentido de que elas possuem sua própria identidade. Os membros individuais dessa forma de associação – aqueles que a aceitaram como um dos seus espaços existenciais – interagem uns com os outros em obediência às normas e à estrutura da organização.

A massa é uma forma de associação sem “sujeitos conscientes”

A “massa” é uma forma de associação. Os indivíduos que a constituem influenciam uns aos outros sem se dar conta disto. Na “massa” não há “sujeitos conscientes” (pessoas) de que estão inseridos numa certa forma de associação (a “massa”) mas, sim, indivíduos que compartilham duma mesma reação a circunstâncias.

A “massa” dura enquanto os indivíduos que a formam permanecem em contato uns com os outros. Quando este contato cessa – independentemente da subsistência ou do desaparecimento das circunstâncias que originaram a “massa” – a “massa” se esfacela.

Nenhuma organização formal, estrutura ou normas, sobrevive a essa união temporária. E, nenhuma outra forma de associação surge da “massa”.

Estados contêm formas objetivas de associação: instituições e organizações formais, por exemplo, o Judiciário e o seu aparato administrativo. Portanto, a “massa” não é a forma típica de vida humana associada a um Estado. Isto não quer dizer que indivíduos não possam circunstancialmente ser parte duma “massa” dentro dum Estado.  Entretanto, como parte duma “massa”, o indivíduo não é o sujeito consciente numa forma de associação que transcende a ele mesmo – uma forma de associação que tem uma identidade própria. Na “massa”, ele apenas reage a circunstâncias ou interesses momentâneos que desencadeiam sua adesão à “massa”.

Comunidade é uma forma original de de associação humana


A comunidade é uma forma de associação. Nela, os indivíduos estão em interação pessoal uns com os outros, como sujeitos conscientes duma forma específica de associação que eles percebem como os englobando e os transcendendo, ao mesmo tempo.

A comunidade tira sua identidade do fato de ser o espaço existencial que nutre aquilo que é mais específico da vida humana, pessoal e associada: vida-com-e-para-o-outro, ou seja, vida como relações significativas, relações que geram sentido para quem nelas se engaja. A comunidade é a forma original de associação humana.

No espaço vital aberto pela forma comunitária de associação, diferentes sujeitos desempenham diferentes papéis funcionais e substantivos. Porém, os papéis funcionais são sempre subordinados aos papéis substantivos. Exemplo: família. O papel instrumental de prover pela subsistência da comunidade “família nuclear” deriva do papel substantivo da “paternidade” e “maternidade”. Isto é, de “quem” a pessoa é com-e-para-outros. Se um filho ou filha assumir o papel econômico funcional de prover pelas necessidades materiais da família, tal papel tem sua raiz não num design instrumental-funcional – organizacional ou não – mas na “natureza” mesma da filiação.

A palavra “natureza” denota aquilo que a pessoa ou qualquer outra ser vivo ou inanimado é em si mesmo. Este “o que, ou quem é” é dado a toda ou qualquer realidade no ato de sua criação, isto é, quando “passou a existir”: pai, mãe, filho, irmã, pedra, pássaro, etc.

Ordem na comunidade é o arranjo de papéis substantivos

Na forma comunal de vida humana associada cada membro age pessoalmente em direção ao outro e ao mundo de acordo, antes de mais nada, com seus papéis substantivos. A “ordem” da comunidade consiste neste arranjo de papéis substantivos fixos: filho, pai, irmão, etc. Papéis funcionais estão sempre a serviço de preservar o espaço existencial onde a vida-com-e-para-o- outro adquire significado concreto e realidade.

A sociedade é um outro tipo de associação. Nela, os indivíduos estão em interação pessoal uns com os outros como “conscientes sujeitos objetificados”. “Sujeitos objetificados” neste tipo de associação agem em relação aos outros e ao mundo segundo papéis funcionais. A sociedade é, pois, um tipo de associação organizacional. Ele vem a ser através de arranjos distintos de papéis funcionais que estão a serviço dum espaço existencial onde a vida é reduzida ao preenchimento (cumprimento) de funções objetivamente prescritas. O indivíduo é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto de estruturas funcionais produzidas por um ato arbitrário baseado no cálculo utilitário de consequências: o que preciso fazer para sobreviver e ter segurança (razão funcional).

Esse ato arbitrário brota das comunidades existentes. As comunidades aquiescem passivamente ou ativamente à constituição de estruturas funcionais apenas quando percebem tais estruturas como um meio para confirmar, sustentar e preservar a vida e a identidade comunitárias. A pessoa, o sujeito consciente duma comunidade, aceita essa redução parentética da sua identidade a papéis funcionais objetivos e a correspondente necessidade de se comportar de acordo, como sua livremente querida contribuição à preservação do espaço vital comunitário onde ela encontra sua verdadeira identidade e significado de sua vida. A sociedade vem a ser sempre um requisito funcional de necessidades percebidas pela comunidade.

Comunidades podem ser primárias ou secundárias. Primárias não incluem nem são constituídas por outras comunidades: família nuclear, grupo de amigos. Comunidades primárias podem informar comunidades secundárias: tribo, nação, comunidade religiosa, etc. Quando isto acontece, a configuração particular da comunidade primária pode ser influenciada a longo prazo pela estrutura da comunidade secundária na qual ela aceitou ser incluída. Por exemplo: nas nações pós-industriais a família estendida praticamente desapareceu e a família nuclear está em processo de extinção.

Estado associa um povo que aceita seu aparato normativo e policial

O Estado é, via de regra, um tipo de associação formada por comunidades primárias e secundárias já existentes. Estas comunidades normalmente estão já constituídas num “povo”. É, pois, este “povo” que aceita a criação do aparato normativo e “policial” do Estado – seu aparato institucional-organizacional – bem como a criação duma Sociedade. Ao aceitar informarem a realidade diádica Estado-Sociedade, as comunidades preexistentes concordam se autolimitar diante do Estado-Sociedade.

Quando isto acontece, os membros individuais – sujeitos conscientes – de comunidades primárias e secundárias preexistentes admitem ser subsungidos a outra forma autossuficiente (autárquica) de vida humana associada. Essa autossuficiência ou poder sobre si mesmo é a característica da realidade diádica Estado-Sociedade. O Estado sempre surge como uma forma de associação impermeável a qualquer influência externa ou poder externo. Neste domínio radical sobre si mesmo reside a soberania do Estado.

Se as comunidades primárias e secundárias que originaram o Estado-Sociedade violam a ordem social e institucional do Estado e reduzem essa ordem à sua própria ordem comunitária, o Estado desaparece. Por isto, é próprio do Estado ter suas ações e princípios ordenativos/normativos derivados de si mesmo. A soberania do Estado é o poder de sustentar a autonomia normativa e executiva do Estado.

Tal poder pode ser detido por uma pessoa (monarca) ou por um grupo de pessoas (aristocracia, oligarquia ou corpo de representação popular). Não importa. Enquanto houver um centro de poder, qualquer que seja a forma institucional-organizacional que ele assuma, a integridade do Estado é preservada e sua existência assegurada.

Monarquia absoluta: o soberano sustenta a vida do Estado (“l’État c’est moi”). Ele pode obrigar outros a servir o Estado sem, com isto, fazer desses outros suportes do Estado. O déspota usa o Estado como sua presa, a serviço de seus interesses pessoais. Comunidades podem apoiar um monarca que mantenha o Estado íntegro. No despotismo, o vínculo entre as comunidades e o soberano é rompido. O déspota considera as comunidades como objetos. Na oligarquia, o Estado está a serviço de manter uma divisão entre uma comunidade de piratas e saqueadores e uma comunidade de saqueados. Este o caso do Brasil hoje. Numa democracia, em tese, todos os cidadãos, membros duma sociedade, sustentam a vida do Estado. Isto é o que significa ser cidadão: membro duma sociedade que sustenta a vida do Estado.

A existência do Estado está sempre relacionada com o poder do Estado, quer este poder apareça como resultado duma decisão comunitária, quer apareça através dum exercício de força que imponha reconhecimento e subserviência.

Que tais comunidades não sejam livres para se constituir, se o Estado as proibir, sua identidade e caráter não são afetados. Elas permanecem sendo o que são.

Estado e povo são realidades distintas

Por isto, Estado e povo são realidades distintas, embora elas sejam com frequência consideradas como idênticas ou necessariamente conectadas. A comunidade “povo” subsiste mesmo quando o Estado-Sociedade deixa de existir. Um povo não é afetado nas particularidades de sua vida comunal se poderes externos o privarem da possibilidade de viverem de acordo com suas próprias normas e sistemas de governo. Exemplo: destruição do Estado Polonês; destruição do Estado Soviético; a identidade do povo polonês e do povo russo saiu mais fortalecida.

A comunidade “povo” é diferente das comunidades primárias – amigos, família, etc. – e secundárias que o compõe. Nas comunidades primárias, indivíduos – não comunidades – constituem sua fundação. Esses indivíduos precisam não só participar da vida comunitária na plenitude de sua personalidade, mas também precisam estar em relação uns com os outros. Assim, nem todos os indivíduos consanguíneos são uma família. Nem todos os indivíduos que tenham vínculos de amizade com uma pessoa constituem um grupo de amigos. É a interação mútua, coexistência relacional concreta que caracteriza essas comunidades. Família significa comunidade de vida onde marido e mulher, crianças e parentes compartilham duma coexistência relacional concreta.

Um povo, entretanto, compreende uma multiplicidade de indivíduos tão grande que contato pessoal (interação) entre todos que pertencem ao povo é praticamente impossível. Abertura para novos membros individuais independentemente das qualidades pessoais ou da possibilidade de vínculos interpessoais é o que caracteriza um povo. Mais ainda, um povo nunca exige ou requisita toda a vida pessoal dos seus componentes individuais.

A cultura compensa falta de relações pessoais entre os membros

Contudo, nesta grande comunidade é necessário – como em qualquer outra comunidade – que esteja presente uma corrente de vida na qual todos os indivíduos que formam essa comunidade estejam inseridos: consciência comunal que intencionalmente abrace a multiplicidade dos indivíduos e das comunidades que pertençam ao povo. A falta de relações pessoais entre todos os membros tem que ser compensada através duma troca contínua de solidariedade entre os membros, o que só é possível através duma mesma visão da realidade. Cada elemento típico dum povo precisa aderir e usar as expressões simbólicas dessa mesma maneira de interpretar a realidade: a cultura.

Os bens de cada cultura – objetos de arte, trabalho científicos, o estilo concreto de vida, etc. – requerem um “centro criativo” em permanente tensão com o  “centro de poder” do Estado. Esse centro criativo se manifesta através duma comunidade que faz parte da comunidade do povo: a comunidade criativa. O interessante é que o universo cultural duma comunidade criativa pode abranger vários povos, sincrônica ou diacronicamente, por exemplo, a cultura helênica e a norteamericana, em épocas diferentes da história, transcendiam e transcendem o povo grego e o povo norteamericano.

Embora comunidades menores e/ou primárias possam construir seu próprio microcosmo cultural, só um povo pode reclamar o direito inerente à sua própria natureza de criar cultura.

Um povo, como personalidade com características criativas, pode decretar a existência dum Estado e duma ordem social (Sociedade), com seus correspondentes sistemas de organização, capazes de assegurar paz e liberdade para seus membros.

Porém, é possível a formação dum Estado que não se funde da decisão dum povo e cujos membros se relacionem apenas a partir dos direitos e obrigações estipulados pelo Estado. Este Estado não teria nenhuma justificativa substantiva interna para sua existência: seria ilegítimo, não teria uma força interna de gravidade, estaria baseado apenas numa vontade imperial caprichosa. É o caso do Estado brasileiro, decretado “em existência” pela corte portuguesa e capturado por oligarquias que definem a configuração da “sociedade” brasileira: quem é “mais” e quem é “menos”.

Existência do Estado não está ligada necessariamente a de um povo


A existência do Estado não está ligada necessariamente à existência dum povo. O Estado fundado num povo é um tipo particular de Estado: um Estado-Nação. Diversos povos podem coexistir dentro dum Estado único. Por exemplo: no Estado Belga coexistem dois povos, os flamengos e os valões. Neste caso, o Estado compreende a todos e regula a vida desses povos sem violar o caráter nativo (nacional) de cada um.

As diferentes personalidades (identidades individuais) de cada povo podem coexistir dentro dum Estado. Mas, se a ordem do Estado e a ordem individual interna de cada povo estiverem em contraste, uma ou ambas as ordens podem entrar em colapso.

A consciência duma identidade compartilhada, baseada num mesmo sistema interpretativo, numa maneira semelhante de ver e ler a realidade (cultura) é a pedra angular da associação de diferentes comunidades que formam um povo. Embora uma sociedade seja constituída com base em comunidades preexistentes, ela não é um povo. Ela é um requisito funcional de sobrevivência ou crescimento econômico dum povo.

Uma sociedade, e por consequência um Estado, desaparecem quando passam a ser uma ameaça real à identidade e preservação das comunidades preexistentes que quiseram a existência da sociedade e do Estado, ou quando um outro Estado e outra sociedade as conquistam. Um povo, por outro lado, só desaparece quando as comunidades e seus membros individuais perdem de vista o sistema interpretativo ou a mesma visão do sentido da vida. Por isto, um povo pode deixar de existir dentro dum Estado-Sociedade enquanto o Estado-Sociedade permanece intacto.

Uma nação quando surge, surge como afirmação duma identidade cultural compartilhada por diferentes povos ou por um só povo. Quando isto acontece, aparece o Estado-Nação.




terça-feira, 20 de setembro de 2011

Mas será o Benedito? Porque a Ética é fundamental...

Depois dum período de engajamentos político-ideológicos, seguido por uma temporada de preocupações apenas com o puramente privado, a cultura ocidental contemporânea voltou-se recentemente para a “arte de viver” e para o estudo dessa arte. Revistas, jornais e outros veículos de comunicação de massa publicam anúncios e artigos que vendem “estilos de vida”.

Conselheiros sentimentais, pseudopsicólogos e uma gama de outros fornecedores de “conselhos” oferecem diferentes receitas de “felicidade” às  pessoas. Toda essa atividade reflete uma preocupação dos indivíduos com si mesmos e contrasta com a visão ética do mundo que insiste em afirmar que “o homem bom pensa em si mesmo por último”.

A Ética como doutrina da arte de viver

Ética, para os clássicos, era nada mais do que a doutrina da arte de viver. Ética, como disciplina filosófica, foi fundada por Aristóteles. A palavra “ética” é a forma adjetivada de ethos. Ethos significa tanto o lugar usual onde alguém vive como significa convenção, costumes e hábitos. Quando, pois, fala-se duma teoria ética faz-se referência ao espaço existencial (o onde vive) da pessoa e ao estudo de costumes e hábitos próprios desse espaço (o como vive).

Costumes e hábitos podem ser considerados de duas maneiras. A primeira, investigativa, no sentido que a palavra investigar possui nas ciências físicas ou naturais. Aqui, busca-se investigar e compreender o costume e os hábitos dum certo lugar ou dum certo povo ou comunidade. A isto se chama “ethologia”: o estudo do comportamento, no sentido assumido pelas ciências comportamentais. Estudos de comportamento são normalmente associados à biologia, (graças ao vencedor do prêmio Nobel, Konrad Lorenz), à psicologia, à sociologia e à antropologia cultural.

A segunda maneira de se considerar “costumes” e “hábitos” é normativa. Nesse contexto, as questões relevantes são: quais os costume e hábitos que são certos, direitos, bons? Como devemos agir, o que podemos fazer e o que não podemos fazer? Essa é a abordagem da Ética.

No sentido normativo, Ética é não só a ciência dos bons costumes e dos bons hábitos mas também o próprio bom costume e bom hábito. O adjetivo “moral”, que tomamos emprestado do Latim, também tem esse mesmo duplo sentido. “Moral” é não só a ciência dos bons costumes e dos bons hábitos mas também o próprio bom costume e bom hábito. Falamos, por exemplo, da “moral” duma equipe, ou da “moral das tropas”. (Hoje, entretanto, o uso das palavras “moral” e “imoral” tem se restringido mais ao terreno do sexual).

Disciplinar o “inflado e incansável ego”

No sentido normativo, Ética está associada à tarefa de explorar os meios pelos quais disciplina-se o “inflado e incansável ego” de cada um, de forma que se possa adquirir e colocar em prática (viver) certas virtudes.

Uma ética que tenha como foco a virtude, em vez do dever, faz da visão o centro da vida moral. Tal ética afirma que o modo como descreve-se os dilemas morais e define-se as obrigações depende de como se vê o mundo. Mais ainda, tal ética sustenta que ação brota da visão e que visão depende de caráter, isto é, da pessoa que se é. Portanto, disciplinas e práticas que moldam a pessoa que se é – como, por exemplo, as disciplinas religiosas da oração e confissão – são importantes na formação duma ética da virtude. O caráter condiciona a visão de mundo e impacta sobre tudo o que se faz.

Há verdades que só podem ser vistas pelo ego disciplinado que informa um bom caráter. O desenvolvimento do caráter é, pois, importante para a ética da virtude. E, o desenvolvimento do caráter é possível através duma educação moral. A educação moral é o processo através do qual o “inflado e incansável ego” adquire o hábito da virtude.

As teorias e práticas de educação moral contemporâneas tentam moldar o “ser” (quem se é lá no íntimo) através do“fazer”. Esse tipo de educação moral quer moldar o ego através dum processo disciplinar que conduza à aquisição de certos hábitos comportamentais: “virtudes”. Nesse contexto, a posse de “virtudes” é sinônimo duma vida bem realizada, dum “fazer” bem feito, duma realização bem sucedida de “si mesmo”.

A virtude do fazer se choca com a graça de ser perdoado

Tal approach é incompatível com a visão do mundo que tem como centro um Deus crucificado: que tem, não na autorrealização, mas no autossacrifício o seu tema central. Mais ainda, a noção de caráter, como resultado do exercício habitual de  habilidades que se possa adquirir por esforço próprio, pelo próprio “fazer”, choca-se com a ênfase Cristã na “graça”. Graça é a resposta gratuita e livre de Deus à necessidade que o pecador tem de ser constantemente  perdoado. Por esforço próprio, o pecador não “adquire” a “graça”.

Nova versão de uma vida virtuosa

Em toda a volta, hoje, há sinais de interesse numa teoria das virtudes e, até mesmo, em ser virtuoso. Embora Alasdair MacIntyre, no seu livro Depois da Virtude, sugira que esse interesse está fadado ao fracasso no tipo de cultura em que se vive, ele espera, contudo, que do caos moral e da degeneração que assolam esses tempos possa surgir uma nova versão da vida virtuosa. Para ele, isto surgirá do esforço daqueles que plasmarão uma vida social na qual a virtude terá um sentido genuíno.

Comparando o atual momento histórico com o período de decadência do Império Romano e o início da Idade das Trevas, MacIntyre diz:

“O ponto crucial naquele período histórico ocorreu quando homens e mulheres de boa vontade abandonaram a tarefa de preservar o Império Romano e deixaram de identificar a continuação da civilidade e da comunidade moral com a manutenção do Império.”

Esses homens e mulheres tentaram, isto sim, plasmar novas formas de vida humana associada, de vida comum. Formas nas quais as virtudes pudessem ser vividas, mantidas e inculcadas. A esperança do autor é que se possa estar vivendo um momento semelhante:

“O que interessa neste estágio é a construção de formas locais de comunidade nas quais civilidade e a vida moral e intelectual possam ser sustentadas através da nova idade das trevas em que já vivemos… Estamos esperando não por Godot, mas por um outro – ainda que muito diferente – São Benedito.”