quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O que são Estado, Massa, Sociedade, Nação, Povo, Comunidade…

Todas as diferentes formas de associação humana assumem uma certa concepção da natureza humana. Uma certa antropologia.

Todas as forma de associação humana aspiram ser um espaço existencial onde há um ordenamento “correto” das relações entre as pessoas.

Associações humanas dependem, pois, dum certo entendimento do que é, afinal, o “ser humano”, e seu “desenho” ou “forma” reflete necessariamente tal entendimento.

As tensões acerca dos indivíduos

Em cada homem coexiste tensão entre os imperativos da individualidade e da gregariedade.

Em cada homem coexiste tensão entre os imperativos da razão funcional (a inteligência a serviço da sobrevivência e da segurança material) e da razão substantiva (a inteligência a serviço das necessidades do outro que não eu mesmo).

Em cada homem coexiste tensão entre os imperativos históricos e os escatológicos (o “aqui e o agora” e o “final dos tempos”).

O homem moderno ou rejeita a existência dessa tensão ou a elimina pela subsunção dum polo no outro.

Há formas de associação que transcendem seus membros individuais no sentido de que elas possuem sua própria identidade. Os membros individuais dessa forma de associação – aqueles que a aceitaram como um dos seus espaços existenciais – interagem uns com os outros em obediência às normas e à estrutura da organização.

A massa é uma forma de associação sem “sujeitos conscientes”

A “massa” é uma forma de associação. Os indivíduos que a constituem influenciam uns aos outros sem se dar conta disto. Na “massa” não há “sujeitos conscientes” (pessoas) de que estão inseridos numa certa forma de associação (a “massa”) mas, sim, indivíduos que compartilham duma mesma reação a circunstâncias.

A “massa” dura enquanto os indivíduos que a formam permanecem em contato uns com os outros. Quando este contato cessa – independentemente da subsistência ou do desaparecimento das circunstâncias que originaram a “massa” – a “massa” se esfacela.

Nenhuma organização formal, estrutura ou normas, sobrevive a essa união temporária. E, nenhuma outra forma de associação surge da “massa”.

Estados contêm formas objetivas de associação: instituições e organizações formais, por exemplo, o Judiciário e o seu aparato administrativo. Portanto, a “massa” não é a forma típica de vida humana associada a um Estado. Isto não quer dizer que indivíduos não possam circunstancialmente ser parte duma “massa” dentro dum Estado.  Entretanto, como parte duma “massa”, o indivíduo não é o sujeito consciente numa forma de associação que transcende a ele mesmo – uma forma de associação que tem uma identidade própria. Na “massa”, ele apenas reage a circunstâncias ou interesses momentâneos que desencadeiam sua adesão à “massa”.

Comunidade é uma forma original de de associação humana


A comunidade é uma forma de associação. Nela, os indivíduos estão em interação pessoal uns com os outros, como sujeitos conscientes duma forma específica de associação que eles percebem como os englobando e os transcendendo, ao mesmo tempo.

A comunidade tira sua identidade do fato de ser o espaço existencial que nutre aquilo que é mais específico da vida humana, pessoal e associada: vida-com-e-para-o-outro, ou seja, vida como relações significativas, relações que geram sentido para quem nelas se engaja. A comunidade é a forma original de associação humana.

No espaço vital aberto pela forma comunitária de associação, diferentes sujeitos desempenham diferentes papéis funcionais e substantivos. Porém, os papéis funcionais são sempre subordinados aos papéis substantivos. Exemplo: família. O papel instrumental de prover pela subsistência da comunidade “família nuclear” deriva do papel substantivo da “paternidade” e “maternidade”. Isto é, de “quem” a pessoa é com-e-para-outros. Se um filho ou filha assumir o papel econômico funcional de prover pelas necessidades materiais da família, tal papel tem sua raiz não num design instrumental-funcional – organizacional ou não – mas na “natureza” mesma da filiação.

A palavra “natureza” denota aquilo que a pessoa ou qualquer outra ser vivo ou inanimado é em si mesmo. Este “o que, ou quem é” é dado a toda ou qualquer realidade no ato de sua criação, isto é, quando “passou a existir”: pai, mãe, filho, irmã, pedra, pássaro, etc.

Ordem na comunidade é o arranjo de papéis substantivos

Na forma comunal de vida humana associada cada membro age pessoalmente em direção ao outro e ao mundo de acordo, antes de mais nada, com seus papéis substantivos. A “ordem” da comunidade consiste neste arranjo de papéis substantivos fixos: filho, pai, irmão, etc. Papéis funcionais estão sempre a serviço de preservar o espaço existencial onde a vida-com-e-para-o- outro adquire significado concreto e realidade.

A sociedade é um outro tipo de associação. Nela, os indivíduos estão em interação pessoal uns com os outros como “conscientes sujeitos objetificados”. “Sujeitos objetificados” neste tipo de associação agem em relação aos outros e ao mundo segundo papéis funcionais. A sociedade é, pois, um tipo de associação organizacional. Ele vem a ser através de arranjos distintos de papéis funcionais que estão a serviço dum espaço existencial onde a vida é reduzida ao preenchimento (cumprimento) de funções objetivamente prescritas. O indivíduo é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto de estruturas funcionais produzidas por um ato arbitrário baseado no cálculo utilitário de consequências: o que preciso fazer para sobreviver e ter segurança (razão funcional).

Esse ato arbitrário brota das comunidades existentes. As comunidades aquiescem passivamente ou ativamente à constituição de estruturas funcionais apenas quando percebem tais estruturas como um meio para confirmar, sustentar e preservar a vida e a identidade comunitárias. A pessoa, o sujeito consciente duma comunidade, aceita essa redução parentética da sua identidade a papéis funcionais objetivos e a correspondente necessidade de se comportar de acordo, como sua livremente querida contribuição à preservação do espaço vital comunitário onde ela encontra sua verdadeira identidade e significado de sua vida. A sociedade vem a ser sempre um requisito funcional de necessidades percebidas pela comunidade.

Comunidades podem ser primárias ou secundárias. Primárias não incluem nem são constituídas por outras comunidades: família nuclear, grupo de amigos. Comunidades primárias podem informar comunidades secundárias: tribo, nação, comunidade religiosa, etc. Quando isto acontece, a configuração particular da comunidade primária pode ser influenciada a longo prazo pela estrutura da comunidade secundária na qual ela aceitou ser incluída. Por exemplo: nas nações pós-industriais a família estendida praticamente desapareceu e a família nuclear está em processo de extinção.

Estado associa um povo que aceita seu aparato normativo e policial

O Estado é, via de regra, um tipo de associação formada por comunidades primárias e secundárias já existentes. Estas comunidades normalmente estão já constituídas num “povo”. É, pois, este “povo” que aceita a criação do aparato normativo e “policial” do Estado – seu aparato institucional-organizacional – bem como a criação duma Sociedade. Ao aceitar informarem a realidade diádica Estado-Sociedade, as comunidades preexistentes concordam se autolimitar diante do Estado-Sociedade.

Quando isto acontece, os membros individuais – sujeitos conscientes – de comunidades primárias e secundárias preexistentes admitem ser subsungidos a outra forma autossuficiente (autárquica) de vida humana associada. Essa autossuficiência ou poder sobre si mesmo é a característica da realidade diádica Estado-Sociedade. O Estado sempre surge como uma forma de associação impermeável a qualquer influência externa ou poder externo. Neste domínio radical sobre si mesmo reside a soberania do Estado.

Se as comunidades primárias e secundárias que originaram o Estado-Sociedade violam a ordem social e institucional do Estado e reduzem essa ordem à sua própria ordem comunitária, o Estado desaparece. Por isto, é próprio do Estado ter suas ações e princípios ordenativos/normativos derivados de si mesmo. A soberania do Estado é o poder de sustentar a autonomia normativa e executiva do Estado.

Tal poder pode ser detido por uma pessoa (monarca) ou por um grupo de pessoas (aristocracia, oligarquia ou corpo de representação popular). Não importa. Enquanto houver um centro de poder, qualquer que seja a forma institucional-organizacional que ele assuma, a integridade do Estado é preservada e sua existência assegurada.

Monarquia absoluta: o soberano sustenta a vida do Estado (“l’État c’est moi”). Ele pode obrigar outros a servir o Estado sem, com isto, fazer desses outros suportes do Estado. O déspota usa o Estado como sua presa, a serviço de seus interesses pessoais. Comunidades podem apoiar um monarca que mantenha o Estado íntegro. No despotismo, o vínculo entre as comunidades e o soberano é rompido. O déspota considera as comunidades como objetos. Na oligarquia, o Estado está a serviço de manter uma divisão entre uma comunidade de piratas e saqueadores e uma comunidade de saqueados. Este o caso do Brasil hoje. Numa democracia, em tese, todos os cidadãos, membros duma sociedade, sustentam a vida do Estado. Isto é o que significa ser cidadão: membro duma sociedade que sustenta a vida do Estado.

A existência do Estado está sempre relacionada com o poder do Estado, quer este poder apareça como resultado duma decisão comunitária, quer apareça através dum exercício de força que imponha reconhecimento e subserviência.

Que tais comunidades não sejam livres para se constituir, se o Estado as proibir, sua identidade e caráter não são afetados. Elas permanecem sendo o que são.

Estado e povo são realidades distintas

Por isto, Estado e povo são realidades distintas, embora elas sejam com frequência consideradas como idênticas ou necessariamente conectadas. A comunidade “povo” subsiste mesmo quando o Estado-Sociedade deixa de existir. Um povo não é afetado nas particularidades de sua vida comunal se poderes externos o privarem da possibilidade de viverem de acordo com suas próprias normas e sistemas de governo. Exemplo: destruição do Estado Polonês; destruição do Estado Soviético; a identidade do povo polonês e do povo russo saiu mais fortalecida.

A comunidade “povo” é diferente das comunidades primárias – amigos, família, etc. – e secundárias que o compõe. Nas comunidades primárias, indivíduos – não comunidades – constituem sua fundação. Esses indivíduos precisam não só participar da vida comunitária na plenitude de sua personalidade, mas também precisam estar em relação uns com os outros. Assim, nem todos os indivíduos consanguíneos são uma família. Nem todos os indivíduos que tenham vínculos de amizade com uma pessoa constituem um grupo de amigos. É a interação mútua, coexistência relacional concreta que caracteriza essas comunidades. Família significa comunidade de vida onde marido e mulher, crianças e parentes compartilham duma coexistência relacional concreta.

Um povo, entretanto, compreende uma multiplicidade de indivíduos tão grande que contato pessoal (interação) entre todos que pertencem ao povo é praticamente impossível. Abertura para novos membros individuais independentemente das qualidades pessoais ou da possibilidade de vínculos interpessoais é o que caracteriza um povo. Mais ainda, um povo nunca exige ou requisita toda a vida pessoal dos seus componentes individuais.

A cultura compensa falta de relações pessoais entre os membros

Contudo, nesta grande comunidade é necessário – como em qualquer outra comunidade – que esteja presente uma corrente de vida na qual todos os indivíduos que formam essa comunidade estejam inseridos: consciência comunal que intencionalmente abrace a multiplicidade dos indivíduos e das comunidades que pertençam ao povo. A falta de relações pessoais entre todos os membros tem que ser compensada através duma troca contínua de solidariedade entre os membros, o que só é possível através duma mesma visão da realidade. Cada elemento típico dum povo precisa aderir e usar as expressões simbólicas dessa mesma maneira de interpretar a realidade: a cultura.

Os bens de cada cultura – objetos de arte, trabalho científicos, o estilo concreto de vida, etc. – requerem um “centro criativo” em permanente tensão com o  “centro de poder” do Estado. Esse centro criativo se manifesta através duma comunidade que faz parte da comunidade do povo: a comunidade criativa. O interessante é que o universo cultural duma comunidade criativa pode abranger vários povos, sincrônica ou diacronicamente, por exemplo, a cultura helênica e a norteamericana, em épocas diferentes da história, transcendiam e transcendem o povo grego e o povo norteamericano.

Embora comunidades menores e/ou primárias possam construir seu próprio microcosmo cultural, só um povo pode reclamar o direito inerente à sua própria natureza de criar cultura.

Um povo, como personalidade com características criativas, pode decretar a existência dum Estado e duma ordem social (Sociedade), com seus correspondentes sistemas de organização, capazes de assegurar paz e liberdade para seus membros.

Porém, é possível a formação dum Estado que não se funde da decisão dum povo e cujos membros se relacionem apenas a partir dos direitos e obrigações estipulados pelo Estado. Este Estado não teria nenhuma justificativa substantiva interna para sua existência: seria ilegítimo, não teria uma força interna de gravidade, estaria baseado apenas numa vontade imperial caprichosa. É o caso do Estado brasileiro, decretado “em existência” pela corte portuguesa e capturado por oligarquias que definem a configuração da “sociedade” brasileira: quem é “mais” e quem é “menos”.

Existência do Estado não está ligada necessariamente a de um povo


A existência do Estado não está ligada necessariamente à existência dum povo. O Estado fundado num povo é um tipo particular de Estado: um Estado-Nação. Diversos povos podem coexistir dentro dum Estado único. Por exemplo: no Estado Belga coexistem dois povos, os flamengos e os valões. Neste caso, o Estado compreende a todos e regula a vida desses povos sem violar o caráter nativo (nacional) de cada um.

As diferentes personalidades (identidades individuais) de cada povo podem coexistir dentro dum Estado. Mas, se a ordem do Estado e a ordem individual interna de cada povo estiverem em contraste, uma ou ambas as ordens podem entrar em colapso.

A consciência duma identidade compartilhada, baseada num mesmo sistema interpretativo, numa maneira semelhante de ver e ler a realidade (cultura) é a pedra angular da associação de diferentes comunidades que formam um povo. Embora uma sociedade seja constituída com base em comunidades preexistentes, ela não é um povo. Ela é um requisito funcional de sobrevivência ou crescimento econômico dum povo.

Uma sociedade, e por consequência um Estado, desaparecem quando passam a ser uma ameaça real à identidade e preservação das comunidades preexistentes que quiseram a existência da sociedade e do Estado, ou quando um outro Estado e outra sociedade as conquistam. Um povo, por outro lado, só desaparece quando as comunidades e seus membros individuais perdem de vista o sistema interpretativo ou a mesma visão do sentido da vida. Por isto, um povo pode deixar de existir dentro dum Estado-Sociedade enquanto o Estado-Sociedade permanece intacto.

Uma nação quando surge, surge como afirmação duma identidade cultural compartilhada por diferentes povos ou por um só povo. Quando isto acontece, aparece o Estado-Nação.




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